publicado na edição de hoje, 26 de novembro, do Diário de Aveiro
Debaixo dos Arcos
Um murro no estômago
Já não colhe a afirmação “à justiça o que é da justiça, à política o que é da política”. Não pelo facto de se eliminar a barreira fundamental do princípio da separação de poderes, mas pelo facto de ser neste limiar, nesta ”fronteira”, que todos os acontecimentos judiciais deste fim-de-semana e início da semana se desenvolveram e culminaram.
Conhecidos os indícios, anunciadas as respectivas medidas de coação, encerrado o processo de inquérito e iniciado o da fase de instrução, é impossível não transpor este decurso judicial para o plano político ao estar envolvido (indiciado e não, à data, julgado/culpado) um ex-primeiro ministro. Importa, no entanto, uma nota prévia: qualquer ausência de comentário pessoal em relação ao arguido José Sócrates e aos indícios de que é acusado, respeitando como princípio e pilar fundamental da justiça a presunção de inocência até prove em contrário.
Já do ponto de vista do impacto deste caso no panorama político português, merece uma recomendável reflexão e, acima de tudo, uma especial preocupação. Já afirmei por algumas vezes a percepção generalizada e comprovada pelos factos que o sistema judicial está, desde há alguns tempos, bastante diferente. A imagem de uma justiça distinta entre “ricos/poderosos” e “frágeis e pobres” tem vindo, claramente, a perder consistência na opinião pública. Depois de muitos anos adormecida e alheia a determinados sectores da sociedade (política, governação, economia) despertou, recentemente, para a sua realidade e missão, não cedendo a pressões, a “opressões”, assumindo-se como alicerce de um Estado de direito democrático em que todos, sem excepção, são iguais perante a Lei. O que se espera é que o cumprimento dos seus princípios e missão seja consonante com a sua natureza e não movidos por qualquer objectivo “justiceiro”. São exemplos os casos como: BPN e BES (no sector económico/banca); nos últimos 20 anos, cerca de 40 processos judiciais envolveram autarcas dos quais os mais mediáticos foram Isaltino Morais, Valentim Loureiro, Fátima Felgueiras, Avelino Ferreira Torres e Macário Correia; ou, de âmbito político, como exemplos, os casos de Duarte Lima, a licenciatura de Miguel Relvas, Face Oculta (envolvendo Armando Vara), Monte Branco, Furacão, da ex-ministra da educação Maria de Lurdes Rodrigues e recentemente o caso dos Vistos Gold. Mas a verdade é que nenhum deles teve o impacto na sociedade e na política como este processo “Marquês”.
Não subscrevo a ideia generalizada que o impacto e a repercussão tenham sido negativos na democracia. Antes pelo contrário. É o próprio funcionamento de um Estado democrático que leva a uma justiça mais activa, eficaz e presente, cumprindo-se os princípios do rigor, transparência, separação de poderes e equidade perante a lei. Curiosamente, a coincidência temporal dos acontecimentos transportam-nos para a efeméride do 25 de novembro de 75 (40 anos depois).
Já do ponto de vista político-partidário, do próprio sistema, é evidente que não é possível ficar indiferente a um enorme e significativo abanão e tsunami que este processo desencadeou, em todos os sectores. Primeiro, pela maioria de razões e por tudo o que é óbvio, dentro do próprio Partido Socialista. A António Costa, elevado ao poder socialista pela facção “socrática”, vai ser exigido um triplo esforço: conter extremismos internos (contra e pró) com repercussões políticas e afastar um eventual regresso da sombra de José Seguro; não permitir que o processo anule toda a narrativa política do programa socialista para o país; e mais fundamental, nesta fase tão “a quente”, gerir o próximo congresso por forma a desviar da opinião pública o sentimento de colagem a um passado recente que se tornou, para a maioria dos comuns dos cidadãos e pelas razões óbvias, extremamente crítico. Segundo, ao PSD e ao CDS caberá a sensatez de não transformarem este processo numa bandeira do confronto político, correndo o risco do feitiço se virar contra o próprio feiticeiro. Terceiro, a todos os partidos políticos pertencerá a responsabilidade de repensarem os seus financiamentos, a sua estruturação (nomeadamente a escolha dos seus dirigentes e eleitos) e a sua acção, mesmo aqueles que, excluindo PSD, CDS e PS, nunca foram poder (recorde-se que nem o BE estará “impune” lembrando o caso da sua ex-autarca em Salvaterra de Magos). Um Estado Democrático precisa dos partidos, só funciona com estes, mas com partidos e políticos que transmitam uma confiança, dignidade e transparência ao seu eleitorado e à sociedade, que dignifiquem a actividade e a democracia. E depois dos recentes acontecimentos é mais que urgente esta regeneração político-partidária porque, por muito que se esforço Passos Coelho, aos olhos dos cidadãos já “contaminados”, os políticos são mesmo todos iguais (independentemente de não ser verdade).