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Debaixo dos Arcos

Espaço de encontro, tertúlia espontânea, diz-que-disse, fofoquice, críticas e louvores... zona nobre de Aveiro, marcada pela história e pelo tempo, onde as pessoas se encontravam e conversavam sobre tudo e nada.

É fogo que arde e se vê.

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publicado na edição de hoje, 21 de junho, do Diário de Aveiro.

Debaixo dos Arcos
É fogo que arde e se vê.

Já cá faltava. Bastaram menos de quarenta e oito horas, menos tempo do que muitos dos portugueses precisaram para perceberem e se inteirarem da tragédia que se abateu sobre a região de Pedrógão Grande, menos tempo do que foi preciso para dar impulso às inúmeras campanhas de solidariedade que surgem pelo país (e não só). Mas, infelizmente, tinha já decorrido o tempo suficiente para cheirar a terra queimada, a sofrimento, a dor, a tragédia e a morte. Tempo mais que suficiente para pairarem no ar os “abutres”. Já cá faltava… era tempo mais que suficiente para o início da “caça às bruxas”. Ainda se choravam os poucos dos muitos mortos agora conhecidos e já se ouvia o brado, mais ou menos colectivo, mais ou menos consciente, do pedido ou da exigência de demissão da ministra da Administração Interna. Onde há fogo, há fumo… e “sangue” (político, entenda-se). A memória, o luto e o respeito pelas vítimas não invalida que não haja interrogações, não se levantem questões, não se procurem respostas. Antes pelo contrário… é essa memória, esse luto e esse respeito que o exigem. Quanto a isto não há qualquer dúvida.

A questão em causa é esta génese bem portuguesa que leva a uma atroz sede por julgamentos públicos antecipados (e precipitados), em ver rolar cabeças, em sentir triunfos políticos mesmo que através da desgraça alheia. As questões que, legitimamente, se devem fazer e as respostas que deverão ser encontradas e dadas não têm necessariamente que atribuir responsabilidades políticas, não têm igualmente que colocar sobre o brilho da lâmina da guilhotina política quem quer que seja e, no caso concreto, mesmo que a isso houvesse lugar, fuzilar politicamente uma só pessoa. Sejamos claros: aproveitamento político desta trágica realidade e deste atípico cenário é, no mínimo, uma desonestidade política e um exercício baixo de politiquice e partidarite. Mais ainda… é querer extrair dividendos políticos onde há responsabilidade colectiva. O livre direito à expressão e opinião não deve, não pode, colher a responsabilidade e o dever do racionalismo, do rigor e, acima de tudo, da verdade.

O caso concreto de Pedrógão Grande é de uma simplicidade que, de tão simples, se tornou complexo pelo impacto dos números e por trazer à memória, da política à sociedade, inúmeras questões e contextos que anos a fio se vão protelando e esquecendo. O incêndio que deflagrou no sábado passado e que já vitimou 64 pessoas e deixou feridas outras tantas e mais de 150 desalojados, nas suas causas e na sua dimensão, é um episódio completamente atípico, fora do normal e que ultrapassa todos os mecanismos que se asseguram e accionam nestas circunstâncias. Mas mesmo assim, não fora o lamentável e doloroso número de mortos e feridos, a realidade não passaria de mais um número para a estatística anual de área ardida, com maior ou menor dimensão comparativamente a outros anos. E por essas pessoas que perderam a vida, pelas que perderam famílias e bens, é preciso encontrar respostas e, de uma vez por todas, assumir esta problemática com soluções concretas e consistentes. Responsabilidades que cabem a governos e governos ao longo dos tempos. Responsabilidades que cabem igualmente às comunidades e aos cidadãos. O que não podemos é deixar que mais uma vez, por mais um ano, toda a reflexão se faça em torno da politiquice, do fuzilamento público, das teorias da conspiração (o eterno fantasma do eucalipto, das celuloses, da mercantilização dos combates aos incêndios, etc.). Com mais ou menos dificuldades, com mais ou menos eficácia, com mais ou menos meios (e estes, face às dimensões das tragédias, nunca são nem nunca serão suficientes) o problema não está no combate, na resposta no terreno ou nos planeamentos estratégicos na ou fora do período Charlie.

As interrogações que muitos levantam no âmbito desta dolorosa tragédia são uma gota de água num universo mais amplo e mais complexo: o despovoamento e o envelhecimento do interior e das aldeias, com impactos na entreajuda comunitária, na capacidade financeira, de recursos e física, para tratar as terras e a floresta; a dispersão populacional; o abandono das propriedades e das terras e a incapacidade de criar mecanismos para o emparcelamento das propriedades; a incapacidade legislativa para permitir alternativas aos proprietários para as suas terras quando já não houver capacidades para fazer a sua gestão. Há, para além das questões ambientais, económicas, de prevenção e combate, uma realidade social que importa não esquecer num país que olha, cada vez mais, para os seus centralismos e abandona o resto do país e das suas gentes. E isto não é do ministro Capoulas Santos, nem da ministra Constança Urbana de Sousa ou de António Costa. Isto tem décadas e inúmeros responsáveis. Por isso é que PSD e CDS (e bem) têm preferido o silêncio e a solidariedade ao fuzilamento político. Pelo contrário, Bloco de Esquerda e PCP, que no ano passado na Madeira se perfilaram entre a dor dos cidadãos, os bombeiros e as acções solidárias, depois de bradarem a todos os ventos pela responsabilidade política da direita, escondem-se hoje, hipocritamente, atrás do fumo e do fogo, silenciosamente. Isto sim… é comportamento de abutres políticos à espera das carcaças.