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Debaixo dos Arcos

Espaço de encontro, tertúlia espontânea, diz-que-disse, fofoquice, críticas e louvores... zona nobre de Aveiro, marcada pela história e pelo tempo, onde as pessoas se encontravam e conversavam sobre tudo e nada.

As pessoas não são números

Publicado na edição de hoje, 5 de março, do Diário de Aveiro.

Debaixo dos Arcos

As pessoas não são números

Não há memória de uma manifestação ou protesto em que, no final, não se discuta o número de participantes, mais do que as razões e objectivos. Quem organiza tende a empolar os valores (mesmo que não caibam nos espaços), quem é visado tende a subavaliar para minimizar os impactos. Também foi assim no passado 2 de Março. Para a organização da manifestação cerca de 1,5 milhões de portugueses saíram à rua; para os “anti-manifestação” o número andaria pelos 500 mil. Mas isto que relevância tem? Nenhuma. Os portugueses saíram à rua sem motivações partidárias, embora com muita motivação política, sem motivações corporativas (por exemplo, sindicatos ou associações). Muitos, nos quais me incluo, nem sequer tinham como “alvo” a Troika (já que estes, sem qualquer responsabilidade no estado a que chegámos, apenas se limitaram a “emprestar” dinheiro, contra um conjunto de pressupostos acordados) mas sim a demonstração da revolta e frustração face à realidade e aos sacrifícios com que se vive no dia-a-dia, à falta de perspectivas de futuro, à total perda de confiança e crédito neste Governo. Eram 1,5 milhões ou apenas 10 mil? Pouco importa… foram os que, por questões ideológicas, sempre se opuseram ao Governo; foram os que, por não aguentarem mais, combatem as políticas e medidas até agora implementadas sem que se sintam e vejam resultados; foram os que, mesmo que ideologicamente próximos ou partidariamente semelhantes, entendem que há necessidade de dizer basta antes que o Governo aniquile, de vez, a social-democracia e o país. E foram também em número suficiente para que quem nos governa (e os partidos parlamentares) perceba, de uma vez por todas, que a legitimidade dos resultados eleitorais não significa legalidade para tudo fazer sem responsabilidade e, principalmente, tudo fazer quebrando um “contrato” celebrado, em campanha eleitoral, com quem o elegeu. Apesar de alguns momentos ideologicamente de esquerda (o que pode ter afastado muitas pessoas, se compararmos com a manifestação de setembro de 2012), a manifestação foi abrangente, foi diversificada, foi marcada pela contestação óbvia ao Governo (e não à Troika, apesar do lema da manifestação).

Na manifestação de sábado passado não se viram pedras, radicalismos e extremismos, nem “molotofes”, nem petardos, nem violência… disso as pessoas também estão fartas, até porque, historicamente, os portugueses sabem dizer “Basta” com flores, com hinos, pacificamente (mesmo com “barril de pólvora” que foi o 25 de novembro de 1975). O silêncio, a tristeza, a revolta, os rostos desesperados, foram suficientes para gritar “Pela Liberdade... Pela Democracia…”. As pessoas não saíram à rua (em 2012, em seis meses registaram-se oito grandes manifestações) só porque não chovia (até porque o frio “apertava”). As pessoas saíram à rua sem a necessidade de propor alguma coisa. As pessoas saíram à rua, como referi, contra o Governo, para dizer que já não aguentam mais austeridade, mas também perigosa e preocupantemente, porque muitos já não acreditam nos partidos, nos políticos, nas instituições democráticas. E isto assusta…

Para os católicos foi altura de lembrar os 50 anos do Concílio Vaticano II. Para o Governo fica o aviso: 2 de março de 2013 marcou o “concílio do povo português”… para o bem e para o mal. Mas com a certeza de que os portugueses não se irão calar perante estes sacríficos desmedidos, as injustiças, as desigualdades, a pobreza e o afundar do país. Já não chega o voto de quatro em quatro anos. Sem liberdade de manifestação não há democracia.