Oh Boaaaa…
publicado na edição de hoje, 30 de dezembro, do Diário de Aveiro.
Debaixo dos Arcos
Oh Boaaaa…
A Assembleia da República aprovou uma alteração legislativa ao Código Penal que introduz o assédio sexual na moldura penal como crime, acrescentando ao comportamento indesejado de natureza sexual não-verbal ou físico a forma verbal. Neste sentido, o artigo 170º do Código Penal incorpora a “importunação sexual verbal”, vulgos piropos na gíria portuguesa, como crime punível até três anos de prisão, dando expressão jurídica a parte da Convenção de Istambul de 2011 que prevê um conjunto de propostas de combate à violência contra as mulheres e a violência doméstica. A proposta surge pela mão do PSD com clara e abrangente concordância dos diversos grupos parlamentares.
Numa primeira reacção a aprovação da alteração ao Código Penal poderá afigurar-se como não prioritária, como secundária, face a outros tantos problemas e assuntos que assolam a conjuntura política e social do momento. Isto se quisermos esquecer que esta aprovação recente da Assembleia da República é o reflexo duma iniciativa legislativa do BE apresentada em Agosto e que caiu na especialidade. Mas bastou, na segunda-feira, percorrer as redes sociais para percebermos, claramente, a pertinência da alteração penal aprovada. Vou me escusar dos pormenores legislativos, realçando apenas o facto da alteração prever agravamento (a pena de três anos) quando em causa estiverem menores de 14 anos. E isto não é um pormenor. Nem sequer fará sentido estar aqui a discutir provas, decisões dos tribunais, etc. O que importa focar é que, infelizmente, o país que adjectivamos como “paraíso político e social”, um país sem grande conflitualidade social e com manifesta segurança nas ruas, um país pobre mas alegrete, permanece, em pleno séc. XXI, no mais retrógrado desenvolvimento social, civilizacional e cultural. Infelizmente, para se mudar mentalidades, tristes e condenáveis mentalidades, é necessário o recurso à imposição legislativa, à penalização e à criminalização. Só assim é que, a muito custo, aprendemos e mudamos. Mesmo que, perante a reacção generalizada, esta mudança vá levar muito e demasiado tempo. Só um triste e deplorável machismo cultural e identitário e enraizado, ainda e muito, na sociedade portuguesa (por mais incrível que pareça, também nos mais jovens ou mais novos) trariam uma reacção pública a esta medida legislativa como a que se assistiu no início desta semana. Confundir as mais abjectas “declarações” que são demasiado conhecidos no vocábulo corrente (só a título de exemplo usando os mais banais e softs «comia-te toda», «Oh borracho, queres por cima ou queres por baixo?») com galanteio ou elogio é o mesmo que confundir uma livre relação sexual com violação. Porque é, apesar da forma verbal, uma violação da dignidade da mulher (seja criança, jovem ou adulta) que está em causa. Liberdade de expressão ou de opinião não tem qualquer correspondência em “liberdade” de agredir, assustar ou humilhar. Isto não existe.
E esta realidade, ao contrário do que muitos querem fazer crer, existe muito para além do preconceituoso universo da “construção civil” ou da errada noção que tudo não passa de conceitos feministas radicais e fundamentalistas. Existe nas relações laborais, existe na escola juntamente e a par com os condenáveis e crescentes processos de bullying ou de stalking, existe nos círculos sociais e existe no dia-a-dia em cada esquina. Existe numa triste cultura que cria a ilusão de uma sociedade justa, igualitária, inclusiva, não racista ou não xenófoba, mas que, na prática, está a “anos luz” de o ser.
Todos aqueles que acham que tudo não passa de um histerismo, dum totalitarismo que impede um simples olhar, um sorriso ou um “piscar de olho”, aqueles que confundem agressão, opressão, atentado à dignidade, com elogio ou galanteio, nunca trataram directamente com a realidade. Nunca deixaram de passar por determinados sítios por receio ou desassossego, nunca tiveram que mudar de passeio ou de rua, nunca se sentiram pressionados, vexados, humilhados e ofendidos, nunca se sentiram alvo da mais abjecta risota ou chacota, nunca foram, inclusive, alvo de assédio físico. Mais ainda… quase de certeza, nunca chegaram a casa e tiveram a infelicidade de lidar com uma criança, uma adolescente ou a mulher, tristes, deprimidas ou a chorar, por terem sido confrontados com a deplorável realidade.
Infelizmente, somos demasiado primitivos para que uma mudança cultural e social tenha de surgir com base num processo de criminalização e penalização.
Mas como resposta, finalize-se: esta alteração do Código Penal é… “boa comó milho”.