O fogo das hipocrisias
publicado na edição de hoje, 14 de agosto, do Diário de Aveiro.
Debaixo dos Arcos
O fogo das hipocrisias
Só por excepcionalidade temática é que este espaço repete, de forma consecutiva, uma mesma abordagem. Mas numa semana em que o país, muito particularmente a região de Aveiro, vive momentos particularmente preocupantes no que respeita aos incêndios (Águeda, Mealhada, Anadia, Albergaria-a-Velha, Sever do Vouga, Estarreja e Arouca) era inevitável não regressar ao tema, por forma a complementar o que foi referido na edição da passada quarta-feira. Numa constatação factual de que agosto transformou este verão num dos piores cenários dos últimos anos (felizmente com menos vítimas mas como enormes danos ambientais, patrimoniais, e uma dimensão considerável da área ardida e dos recursos utilizados no terreno), importam algumas notas sobre incoerências e irresponsabilidades políticas e cívicas.
1. da incoerência. Nem sempre assim foi noutros anos, mas este cenário dantesco que temo vivido revelou um reconhecimento, uma gratidão, uma onda solidária, para com os BOMBEIROS (sim… em maiúsculas) inquestionável. São de facto uns verdadeiros heróis, com um espírito de serviço e de missão públicos verdadeiramente ímpar. Mas esta onda de reconhecimento público quase que total levanta uma questão: os BOMBEIROS também existem no inverno, nas cheias, num incêndio urbano (habitação), num acidente rodoviário, no simples transporte de doentes. É que eles existem e trabalham todo o ano. E quantos hoje solidariamente doam água, leite e barras energéticas se lembram dos Bombeiros no resto do ano? Quantos são os que não viram a cara ou fecham os vidros dos carros nos habituais e recorrentes peditórios nos cruzamentos ou nos semáforos? Os Bombeiros existem TODO o ano.
2. da irresponsabilidade política. Já não bastava a ciclicidade do flagelo dos incêndios sempre que chega cada verão para a tudo isto somarmos o mediatismo e aproveitamento político que gravita à volta da realidade. Faz bem a oposição (PSD e CSD) em manterem o silêncio crítico já que esta triste realidade não é nova, repetiu-se em cada ciclo legislativo sem que nada mudasse. Mas também faz bem em apontar a responsabilidade ao Governo de António Costa que, ainda há cerca de um mês, referia que estava tudo planeado, preparado e controlado. Nem o Presidente da República deixou de apontar o dedo a tamanha irresponsabilidade política e governativa porque afinal nada mudou. E é pura demagogia e marketing político vir com anúncios governativos de mudança de paradigma na gestão desta realidade porque todos os anos os discursos são os mesmos e todos os anos os resultados iguais: são inúmeros os estudos feitos, os relatórios produzidos, as propostas laboradas, a legislação produzida e existente. Infelizmente o combate (por diversas razões) sempre se sobrepôs à prevenção, às políticas certas de florestação e ordenamento, ao ambiente, à moldura jurídica (que não se esgota tão somente na moldura penal de condenação de eventuais acções criminosas) e legislativa, à fiscalização, à conservação. É pura retórica impetuosa, no “calor” do momento vivido, falar-se numa plataforma interministerial quando ao(s) Governo(s) se exige, permanentemente, uma corresponsabilidade ministerial na gestão do país, principalmente em temas como este que alargam o leque de responsabilidades: ambiente, agricultura e floresta, administração interna, defesa, justiça, entre outros.
Mas há ainda uma nota a realçar. É inaceitável e inqualificável a hipocrisia política do Bloco de Esquerda nesta realidade. O aproveitamento político deplorável não pode deixar de ser referenciado. Basta recuarmos até aos últimos quatro anos para nos lembrarmos do rasgar das vestes e dos pedidos de “cabeça” de governantes sempre que o país chegava a este ciclo. Hoje, quando a realidade em nada difere das anteriores, não há uma crítica, uma acusação, ao Governo, assistindo-se a um lamentável piadético discurso político de solidariedade. Por mais que o BE se esforce é, hoje e neste verão, mais do que claro que é um partido DO governo (e não apenas parlamentar), já não dá para esconder mais, é demasiada incoerência e hipocrisia políticas movidos pela ânsia e sede do poder. Ser ou estar no Governo exige responsabilidade, não é fácil. Outros tempos…
3. da irresponsabilidade da sociedade. Apesar do considerável número de casos conhecidos em que a ignição de um incêndio ocorre por acção criminosa, a maioria dos fogos surge por negligência humana (e um valor muito residual por acção da própria natureza). São vários os dados oficiais que o comprovam. Percebendo-se a revolta e a dor de muita gente, principalmente quando se perdem vidas e bens, não é o, tão desejado por alguns, aumento da moldura penal (de 12 para 25 anos) que irá reduzir o número de actos criminosos. Poderá ser aceitável os 16 anos máximos, mas mais do que isso iria provocar um desequilíbrio na harmonia penal existente face a outros crimes. Não é pelo facto de haver, por exemplo, prisão perpétua (ou os 25 anos de prisão) que diminuem os homicídios. O que é necessária é uma mudança radical nos nossos comportamentos (cigarros no chão, o lixo nas matas após os “piqueniques”, etc.), hábitos e tradições: limpeza do património florestal, cumprimento legal, a ausência de comportamentos de risco como os foguetes nas festas (tão tradicionais e enraizadas nesta época do ano) ou as velas acesas nas “alminhas” à beira das estradas e junto à florestação.
Não basta lamentarmo-nos verão após verão… a responsabilidade é diária, permanente, e cabe a todos.