É pró-menino e prá-menina
publicado na edição de hoje, 30 de agosto, do Diário de Aveiro.
Debaixo dos Arcos
É pró-menino e prá-menina
A semana ficou marcada pela polémica entre o “azul” e o “rosa” centrada na edição, por parte da Porto Editora (mas não caso único), de dois blocos de actividades para crianças diferenciados com base no sexo (rapaz/menino, rapariga/menina). Apesar da publicação ter quase um ano (em Portugal temos sempre esta infelicidade com os delays temporais) a referenciação pública levou às mais díspares opiniões e condenações, confinadas ao tradicional “pró e contra”.
A polémica tem várias vertentes e é social e politicamente relevante, ao contrário do que muitas vozes que se indignaram contra a legítima indignação querem fazer crer e menorizar. Há, em pleno ano de 2017, no pleno Portugal do século XXI, um estereótipo e um preconceito profundamente enraizado no que respeita à questão da igualdade de género. E não são pormenores ou peanuts. É um país, nesta área, substancialmente retrógrado, parado no tempo, medieval. Esta é a realidade dos factos.
Logo à cabeça surge a falta de percepção, de noção ou até de honestidade intelectual que impede a noção do sentido da “igualdade de género”. É óbvio, por mil e uma razões (que me abstenho de elencar por entender que ferem a inteligência de qualquer pessoa), que o menino é diferente da menina, o rapaz da rapariga, o homem da mulher. Ponto. É a vida… é da vida. Não é, nem nunca foi isso que está ou esteve em causa. Usar esta argumentação é reveladora de uma clara insuficiência cognitiva (antigamente dizia-se mesmo “burrice”). O que está em causa é a igualdade de oportunidades, de direitos, de respeito, de dignidade, independentemente do género. É tão simplesmente isto que grande parte da sociedade portuguesa ridiculariza, menospreza, desvaloriza, mesmo que isso continue a espezinhar e a ofender muitas meninas, raparigas e mulheres. Não se trata de questionar uma publicação só porque uma é azul (menino) e outra é cor-de-rosa (menina), o que por si só já é estúpido. Trata-se de questionar a necessidade de um bloco de actividades diferenciado para menino ou menina quando, pela missão pedagógica e educativa da Porto editora, se esperava e exigia uma publicação única para crianças. E também se esperava de uma editora que não houvesse tratamento desigual quanto à aprendizagem ou capacidades cognitivas baseadas no género (ao contrário do que há quem queira fazer crer para desvalorizar a indignação, o parecer técnico da Comissão para a Igualdade de Género referencia seis exercícios de dificuldade acrescida diferenciados no livro “azul” e quatro no livro “rosa”). Por essa razão teremos no futuro manuais escolares diferenciados, testes escolares diferenciados, exames diferenciados e regressaremos (cantando e rindo) às escolas diferenciadas para rapazes e raparigas. Mas, lamentavelmente, a questão da indignação não se limita ao estereótipo da diferenciação da cor ou da publicação diferenciada. A sociedade está mesmo carregada de preconceitos de género: a descrição e referenciação do menino ligado às actividades de ar livre, ao desporto, às ferramentas, enquanto a menina se apresenta no mundo das fadas e princesas, das actividades domésticas, é abjecta e abominável. É preconceituoso e é estereotipado.
Assim como é condenável o recurso à manipulação política do tema. A Comissão de Igualdade do Género tem uma missão e uma responsabilidade mais que óbvias e, infelizmente, necessárias face ao frágil desenvolvimento social e cultural do país. Importa recordar (como fez e bem a Fernanda Câncio num recente artigo no Diário de Notícias, “Isto só lá vai com educação”) o plano, ainda em vigor, para a igualdade de género traçado pelo governo de Passos Coelho: «é tarefa fundamental do Estado promover a igualdade entre homens e mulheres" e "dever inequívoco de qualquer governo reforçar a intervenção no domínio da educação, designadamente com a integração da temática da igualdade de género como um dos eixos estruturantes das orientações para a educação pré-escolar». Sem mais comentários. Isto não é uma causa de esquerda ou direita.
Mas para aqueles que acham e tratam a questão da igualdade de género como uma minudência e uma obsessão ideológica ou fracturante de uma minoria, é importante relembrar: a necessidade de legislar para a inclusão (cotas) de mulheres em listas eleitorais; as mulheres ganham, em média, menos 16,7% que os homens (menos 165,06€ a menos), sendo que nos quadros superiores (habilitações qualificadas) essa diferença aumenta para os 26,4%; em média as mulheres dedicam mais 1:13 hora às tarefas domésticas que os homens; as mulheres ocupam apenas 13% dos cargos de gestão empresariais; valores que, tendencialmente, têm aumentado e não diminuído. Isto já para não falarmos dos valores da violência doméstica ou das restrições laborais por motivos da condição maternal.
Claro que dar a um menino um brinquedo cor-de-rosa é torná-lo potencialmente efeminado. Um perigo, portanto.