Era suposto ser a Reforma do Estado
publicado na edição de hoje, 3 de novembro, do Diário de Aveiro.
Debaixo dos Arcos
Era suposto ser a Reforma do Estado
Após mais de dois anos de governação e oito meses de “espera”, finalmente foi apresentado pelo vice Primeiro-ministro, Paulo Portas, o “Guião da Reforma do Estado”. Desilusão total.
Primeiro, a tão badalada “Reforma do Estado” não precisa de um ‘guião’. Precisa é de uma estratégia consistente, de sustentação, quantificação e fundamentação das medidas a aplicar, de objectivos e dados claros. Precisa de repensar e reformular as suas funções: mais regulador e menos burocrático mas mais fiscalizador; menos assistencialista e mais social; menos “pesado” mas mais bem estruturado e rentabilizado. Segundo, a “Reforma do Estado” precisa de consenso, coragem e determinação política, algo que o Governo, com a sua acção, foi afastando e tornando, dia após dia, ano após ano, cada vez mais improvável e inexequível, nomeadamente em relação ao principal partido da oposição.
Torna-se evidente, face à realidade do país, que é urgente (sempre o foi) a aplicação prática de uma “Reforma do Estado” (a sua reformulação); os princípios são óbvios e partilhados pela maioria dos partidos com assento parlamentar (excepção para a obsessão “constitucionalista” de uma parte da esquerda) e pela maioria dos portugueses: é preciso um Melhor Estado, mais eficiente, mais eficaz, com clareza e justiça social, que pode passar, ou não, por “Menos Estado”. E aqui encontramos a primeira incoerência do Governo e do dito Guião: ou há coragem política para aplicar, já, a Reforma do Estado ou o arrastar por várias (duas) legislaturas é o mesmo que hipotecar (mais uma vez) a oportunidade. Isto é óbvio há muitos e muitos anos e governações. O que tem falhado, sistematicamente, é a coragem política para aplicar, na prática, os princípios.
Além disso, o Guião apresentado mais não é do que um amontoado de conceitos/princípios (alguns “copy paste” de documentos ou relatórios da Troika, da OCDE, etc), sem grande inovação (com raras excepções) que não contempla qualquer fundamentação ou sustentação quantitativa (nem de suporte, nem de impacto), nem qualquer cronologia. Tornou-se mais que evidente que o documento apenas espelha o que deveria ter sido o programa eleitoral de Passos Coelho (e o “seu” PSD… repito o “seu”) e que foi totalmente desvirtuado por um conjunto de promessas não cumpridas ao fim destes mais de dois anos de mandato. Por outro lado, não deixa de ser menos evidente que o Guião apresentado ontem, por Paulo Portas, depois de tantos anúncios, tantos prazos falhados, depois de tanto tempo de espera (provavelmente, numa gaveta) acaba por ser divulgado (tosco, confuso, incoerente) mais pela pressão política do que pela vontade do Governo.
Importam ainda algumas considerações práticas. Em primeiro lugar há um claro e condenável erro estratégico e político do Governo: Reformar não é cortar (algo que até foi sendo repetidamente sublinhado por Paulo Portas). Reformar é repensar, questionar e reformular (inovar). Desta forma, não se percebe porque é que este Guião e a necessidade de Reformular o Estado surja por imposição do resgate externo e pelos tão badalados 4 mil milhões de euros de cortes impostos pela Troika. Não "bate a bota com a perdigota". Deveria surgir, sim, por vontade política e pela necessidade óbvia de reestruturar o Estado, o seu papel, as suas funções e a sua Administração e não (apenas) pelas circunstâncias da situação de país resgatado ou por compromissos externos. Depois, não se apresenta uma Reforma do Estado sem sustentar/quantificar as medidas e os seus impactos, nem uma simples cronologia de implementação. O que nos mostra o documento é um elencar de chavões e conceitos, alguns já em si mesmo demasiadamente gastos. Mas apesar de tudo foi apresentado um “documento” que tem, obviamente, algumas intenções políticas e uma ou outra (raras) inovação.
Desconfio da capacidade de Reformar com o que está perspectivado para a área da saúde e da justiça, bem como do poder local. No entanto, o “Guião” comporta alguns aspectos interessantes relacionados com a estrutura e organização da administração central: a redução dos seus encargos directos (recursos humanos) proporcionando uma melhor e maior sustentabilidade da administração pública; fusão de serviços ministeriais (apesar do contra-senso em relação ao Orçamento do Estado para 2014 que comporta um aumento da despesa nesta área); redefinição dos objectivos e missão de vários organismos (observatórios, institutos). Para além disso, poderá ser interessante (à semelhança do que acontece em vários países europeus… Suíça, por exemplo) a discussão em torno da implementação de um tecto máximo para as reformas. Outro sector do Estado que poderá ter alguma inovação e impactos benéficos é a Educação/Ensino com algumas propostas que poderão ter exequibilidade e interessantes resultados para as escolas (professores, alunos, pais) e sociedade.
Mas no essencial, o que foi apresentado (depois de tanto tempo à espera) é um “guião” para um filme muito pobrezinho… nem para amadores serve.