A desonestidade da "chico-espertice tuga" no mercado de arrendamento
(crédito da foto: André Rodrigues, arquivo jornal Público)
Quando milhares de jovens portugueses (quase 50 mil) conheceram hoje o seu destino académico, com a publicação das listas de acesso ao ensino superior (desde já muita sorte aos que iniciam esta etapa e para os que ficaram, este ano, votos de um melhor resultado em 2025), há um misto de satisfação, orgulho e de alegria, misturado com uma forte dose de inquietação e apreensão. Nomeadamente, para os que se encontrarão na condição de deslocados e o peso que a falta de habitação ou os seus astronómicos valores representam no orçamento familiar, levando mesmo a que muitos desistam da sua formação superior (ou optem por outras ofertas formativas, outros cursos, que não estavam, de todo, nos seus horizontes e objetivos).
A par de tudo o que possamos dizer em relação à crise habitacional (que está longe de ser um problema exclusivamente nacional, bem pelo contrário) e aos riscos (alguns já se se notam) da revogação de muitas das medidas que estavam em vigor no Plano Nacional de Habitação do anterior governo, há um dado que importa trazer à colação: a questão do arrendamento e a chamada “economia paralela”.
Podemos discordar ou aplaudir as medidas que os governos (sejam eles quais forem) implementam no combate à crise habitacional, nos apoios fiscais e financeiros para aquisição de habitação própria, nos apoios e benefícios no arrendamento, seja ele direcionado às famílias, aos jovens, por exemplo, estudantes, seja ele, também, focado nas profissões que exigem mobilidade, como os médicos, as forças de segurança ou os professores.
Mas há uma realidade com a qual não podemos, por dever cívico, deixar de condenar e criticar: a “tradicional” chico-espertice nacional para o desenrasque e para contornar as responsabilidades sociais e legais.
Uma recente (julho de 2024) auditoria da Inspeção-Geral das Finanças (IGF), divulgada no âmbito da publicação do relatório do combate à fraude e evasão fiscais e aduaneiros de 2023, estima que 60% dos arrendamentos são ilegais, sem qualquer vigência contratual e respetiva declaração de registo na Autoridade Tributárias (Finanças).
Ultrapassemos, para o caso, a gravidade do impacto da realidade nos jovens estudantes do ensino superior, privando-os do acesso aos benefícios sociais para compensar os elevados custos (quase que nacionais) do arrendamento enquanto deslocados para as localidades onde gostariam de estudar (ou onde foram colocados). Para muitos, essa será a diferença entre seguir o seu legitimo sonho ou ficar pelo caminho.
Dois lados da mesma moeda.
Primeiro, é incompreensível e inaceitável que o Estado, nomeadamente a Autoridade Tributária, capaz de cruzar informação como consumos de água, luz, gás e comunicações com a ausência de registo de contrato de arrendamento, manifeste-se incapaz de atuar e agir, judicialmente, sobre os respetivos proprietários ou arrendatários.
Segundo, tão ou mais grave, é esta atitude tida como natural e normal de quem acha que o incumprimento e a falcatrua significam mérito, esperteza (a não ser a saloia) e superioridade perante o Estado, a sociedade e os outros. Mesmo que percebam (e a maioria percebe) que o crime fiscal em causa representa um esforço acrescido para os restantes cidadãos cumpridores e para o Estado, e que a ausência de contrato e respetiva declaração fiscal leva a uma autodesregulação do mercado.
Mais ainda, esta atitude disfarçada de heroica é um total desrespeito por todos aqueles proprietários que, por uma questão de honra e seriedade, entendem ser correta e justa (do ponto de vista legal, podemos discordar quanto aos valores e à carga fiscal) a formalidade contratual e o seu registo nas finanças.
Esta condenável atitude tão portuguesa (seja neste contexto, como em tantos outros), para muitos vista como heroica, espelha, para além das questões legais e criminais (já por si demasiado graves) uma manifesta falta de moral social e de ética comercial que, ao contrário do que os próprios possam assumir, nada tem de glorioso ou de dignificante.
Os mesmos que, depois, são tão expeditos e tão perentórios em reclamar mais serviços e apoios do Estado, como se não estivessem, eles mesmos, em falta com o Estado e a sociedade.
E isto é tão somente uma questão de responsabilidade e cultura comunitária e social. Não é responsabilidade do Estado e da sua Administração.
É uma questão de dever cívico, uma questão de cidadania. Tão somente.