A epifania falhada da extrema-direita no Parlamento Europeu
O que não significa que não tenham surgido, na maioria dos Estados-membros da União Europeia, manifestos resultados eleitorais preocupantes para a democracia e o futuro da Comunidade Europeia. Mas já lá vamos...
Comecemos por Portugal.
Seja por poucachinho (uma diferença, aliás, maior do que nas legislativas, considerando sempre que a AD é uma coligação e não uma força partidária isolada, PSD ou CDS), seja com a perda de um eurodeputado (face à redistribuição aritmética dos votos no sistema de Hondt que penaliza os mais votados em favor dos menos votados), o PS venceu as eleições, as primeiras da era Pedro Nuno Santos, conquistando mais 100 mil votos, mais coisa, menos coisa, do que em 2019, diminuindo a sua presença europeia de 9 para 8 eurodeputados. A par disso, importa destacar – porque importa sempre – que a vitória do PS representa a primeira eleição nacional ganha, em Portugal, por uma mulher, neste caso Marta Temido.
Em relação ao PSD, que perdeu este processo eleitoral, o enfatizar desta derrota não é pelo número de eurodeputados (manteve a mesma representatividade de 2019), nem pelo número de votos expressos (que aumentou, considerando a soma dos votos do PSD e do CDS em 2019). O que está em causa é muito mais, muito mesmo, do que os números do resultado final. Esses, por si só, dizem que o PS ficou em primeiro e o PSD em segundo. Portanto, o primeiro ganhou, o segundo perdeu. Mas há muito mais para além desta realidade.
A verdade é que o Governo, o PSD e, ainda, o próprio Luís Montenegro apostaram as “cartas todas do baralho” nesta eleição: desde a disruptividade e um (pseudo) mediatismo do cabeça de lista, até ao envolvimento direto da agenda governativa na campanha eleitoral (a nacionalização das eleições, a aprovação de medidas atrás de medidas, de anúncios governativos atrás de anúncios), sem esquecer, ainda, que o Ministério Público, mais uma vez, teima em não deixar passar despercebido, judicialmente, mais um processo eleitoral. Como mero exemplo, basta recordar o Ministro dos Negócios Estrangeiros que veio a terreiro rasgar as vestes e pedir um cartão vermelho ao Partido Socialista, a propósito da aprovação, na Assembleia da República, da proposta do IRS apresentada pelo PS. Provavelmente, por algum desespero partidário, por ter sido notório, durante toda a campanha, que o PSD muito dificilmente ganharia estas eleições.
Mas o dia de ontem encerraria com festa nas hostes liberais (algumas vezes tão perigosos como os extremismos pelo anarquismo económico e financeiro que comprime e condiciona a sociedade). A entrada no Parlamento Europeu, com 2 eurodeputados e com uma percentagem eleitoral que a empata, basicamente, como terceira força política, com mais de 300 mil votos angariados, em relação a 2019. O que, a bem da verdade, não deixa de ser notório e surpreendente.
Apesar da fraca percentagem, do baixo número de votos expressos e da queda em relação a 2019, não podemos afirmar, com justiça, que BE e PCP tenham saído destas eleições com uma pesada derrota. Primeiro, porque continuam a representar Portugal no Parlamento Europeu. Segundo, depois dos resultados desastrosos nas eleições regionais da Madeira que atiraram os dois partidos “porta fora” da Assembleia Regional e depois da queda eleitoral nas legislativas de 10 março, não se pode esconder que o espaço político português tinha pouca esperança, restava a fé ou a fezada dos respetivos eleitorados, nos resultados eleitorais dos bloquistas e dos comunistas. Mas, de facto, reconheça-se o empenho e a entrega dos cabeças de lista respetivos, Catarina Martins e João Oliveira, que garantiram, mesmo que à tangente, a continuidade da presença em Bruxelas e em Estrasburgo. Perderam metade dos votos e metade dos eurodeputados, mas mantiveram, com uma ligeira queda (muito por força da abstenção), os valores eleitorais das legislativas de março deste ano.
Com sabor agridoce ficou o Livre que, triplicando o número de votos, acabou por não conseguir entrar no Parlamento Europeu, não seguindo a pegada do seu porta-voz Rui Tavares (eleito, como independente, nas listas do BE em 2009).
Derrotado foi mesmo o PAN que, longe da esfera ideológica dos partidos ecologistas europeus, nomeadamente da Europa do Norte e da região escandinava, perdeu o único lugar que conseguiu alcançar em 2019.
Mas a verdadeira vitória veio da democracia e do seu fortalecimento, com o desaire da extrema-direita, contrariando, inclusive, o panorama de grande parte dos países da União Europeia. É certo que conquistou dois lugares e entrou, pela primeira vez, em Bruxelas, mas para o Chega soube a quase nada face às expetativas e às metas apontadas. E esta derrota não é do candidato, do cabeça-de-lista escolhido pelo líder do partido. A derrota é mesmo do Chega e de André Ventura que foi quem fez, basicamente, toda a campanha eleitoral, relegando os seus candidatos para um segundo, terceiro ou vigésimo plano. O terceiro lugar conquistado, com uma percentagem eleitoral abaixo dos 10% (praticamente igual à IL) e a perda de quase 800 mil votos em relação às últimas legislativas só realça o desaire eleitoral. Mais… importa ainda olhar para as três regiões onde o Chega foi estrela das legislativas de março, como o Alentejo e o distrito de Setúbal onde tinham sido o segundo partido mais votado passando, neste domingo, para 3.º ou 4.º lugares e perdendo mais de metade dos seus votos, com especial destaque para o Algarve onde tinha ganho as legislativas e, nas europeias, ficou a 1/3 do registo de 10 de março e ficou em 3.º lugar.
Há um dado ainda relevante… face aos resultados verificados, apesar das eleições serem focadas no Parlamento Europeu, há uma nota que importa referir: a política nacional não vai ser igual depois deste dia 9 de junho. Seja para o Governo, seja para PSD e CDS na Assembleia da República, seja para a Oposição, nomeadamente à esquerda.
Quanto à Europa, que é, no fundo, o espaço onde estes resultados se vão projetar e fixar.
Há duas leituras que sendo distintas, convergem na preocupação e no futuro para a União Europeia e para a democracia na europa.
É verdade que não se registou, no quadro do Parlamento Europeu, a tão anunciada epifania da extrema-direita e do nacionalismo radical. Os Conservadores, Nacionalistas e Radicais, somados, ocupam 131 lugares dos 720 mandatos europeus, sendo a maioria dos lugares (491, cerca de 68,20%... portanto 2/3) ocupados pelos sociais-democratas do PPE (184), pelos Socialistas e Centro Esquerda (139), pelos Liberais, apesar da grande queda (80), Verdes e Esquerda (88). Por outro lado, a direita radical, extremista e conservadora apenas conquistou mais 4 lugares do que em 2019. A diferença está no número de eurodeputados Não Inscritos e que podem, em determinado contexto, dificultar o trabalho do Parlamento Europeu e que, nestas eleições, veem o seu número aumentar de 65 mandatos, em 2019, para 98, em 2024. Mais 43 mandatos.
Mas há uma outra realidade política nestas eleições. Apesar de não se verificar uma projeção global no Parlamento Europeu, a verdade é que num grande número de países, nomeadamente nos fundadores da União Europeia, na significativa maioria dos 27 Estados-membros a extrema-direita, o nacionalismo e a direita conservadora ganharam terreno, ganharam votos e conquistaram eleitorado. Estamos a falar dos Conservadores na Bélgica (que levaram à demissão do Primeiro-ministro belga), Chéquia, Letónia ou Roménia. Dos nacionalistas e da extrema-direita na Alemanha (apesar de todas as recentes polémicas com o Afd, subiram nos resultados e ultrapassaram o partido do governo e de Scholz), na Áustria, em Chipre, na Espanha (com o Vox a duplicar o seu eleitorado), na Estónia, na Polónia, nos Países Baixos, na Bulgária (com o partido anti-União Europeia, anti-Nato e pró Rússia a ficar em terceiro lugar), a insuspeita Hungria (apesar da queda do partido de Viktor Órban), a vitória expressiva do partido da Primeira-ministra italiana e a repetição da força da extrema-direita francesa, reforçada pela queda estrondosa do partido de Macron e que levou à dissolução da Assembleia Nacional e a marcação de eleições ainda neste mês de junho.
E esta realidade é que preocupa pela fragilização e ataque aos valores da democracia. Há cerca de duas décadas (ainda temos bem presente o caso trágico do pequeno Alan, numa praia mediterrânica) a questão do fluxo migratório, seja ele o tradicional, o que resulta do fluxo de refugiados (pela guerra, pela fome, pela exploração, pelas alterações climáticas) ou como resultado do flagelo do tráfico humano, tem deixado marcas profundas na sociedade europeia. A par disso, a inconsistência da estratégia e do plano de apoio à Ucrânia tem aberto algumas feridas na coesão europeia, na temática da Segurança e na política externa.
Face a este panorama, ao crescimento do radicalismo e do nacionalismo, à dissonância da política externa europeia, com o aumento das vozes pró-Rússia e pró-Putin, a União Europeia precisa de uma reflexão urgente, precisa de se revisitar, precisa de voltar a olhar para a sua génese, para os seus pilares e valores. Precisa de regressar às prioridades de uma Europa Social, de uma Europa com uma economia forte, de uma Europa assente nos valores e nos pilares da democracia: liberdade, fraternidade e igualdade.
Sem esquecer a questão da guerra da Ucrânia e dos alargamentos em curso ou perspetivados, e, muito menos, sem descurar outras formas de encarar a questão da Imigração, nomeadamente no fluxo migratório do Mediterrâneo, que se tornou um verdadeiro cemitério humano, e numa estratégia que nunca foi assumida pela Europa que se prende com uma pressão sobre a origem migratória, muito pela assunção de responsabilidades coloniais e exploratórias de vários países europeus, ao longo de décadas, e que deixaram vastas regiões geradoras de conflitos, terrorismo, guerra, exploração, fome, pobreza, insustentabilidade governativa e política, e instabilidade social.
Caso contrário… a recomposição dos espaços políticos na Europa podem trazer preocupantes e complexos resultados para a coesão, democracia e sobrevivência do projeto europeu.