A habitação é um direito… um dos primeiros
(Crise na habitação pode afetar 1.660 milhões de pessoas até 2025. fonte: euronews)
O artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa estabelece, no seu n.º 1, que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. Ainda o mesmo artigo, no ponto 3, refere que “o Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria”.
No final da semana passada foi publicado o diploma legislativo que estabelece a isenção de IMT e Imposto de Selo na compra de habitação própria e permanente por jovens até aos 35 anos.
Já muito foi dito e escrito sobre a medida, a injustiça e exclusão que a sua limitação etária provoca e os seus impactos paliativos ou inconsequentes, quer para os próprios jovens, quer para a manifesta crise habitacional.
O problema do aceso à habitação (compra ou arrendamento) não está nas taxas ou impostos como o IMI ou o IMT. Está no mercado e na especulação imobiliária, seja no valor da aquisição, seja no valor do arrendamento, muito acima da real aptidão das finanças dos portugueses e das famílias, ou ainda nas prestações do crédito bancário. Em junho, o Instituto Nacional de Estatística divulgou os resultados do Inquérito às Despesas das Famílias (2022/2023), que evidenciam encargos familiares com a habitação na ordem dos 39%, muito acima das despesas mais propaladas como os transportes (12%), alimentação (13%), saúde (4%) ou educação (1,5%), valores médios anuais por agregado familiar.
Já no caso do arrendamento, a ausência de políticas consistentes de apoio e incentivo e o fim do teto do arrendamento irão aumentar a especulação e os valores surreais que hoje proliferam, não apenas nos grandes centros urbanos ou metropolitanos, mas um pouco por todo o país. A verdade é que Portugal vive, nos últimos anos, numa bolha imobiliária (lucrativa para alguns, inacessível para a maioria) de habitação de luxo e de construção focada no turismo, com preocupantes impactos sociais, comunitários e urbanísticos. E, nesta vertente, também a exigida redução do IVA pelo setor da construção afigura-se, por si só, mais um remendo ou mais um paliativo. Muito dificilmente levará à diminuição dos preços de venda do imobiliário, apenas facilitará o custo da construção (mesmo assim, alavancando a oferta) e não o reflexo no preço final do imóvel.
Além disso, a intenção do Governo de reservar um papel determinante dos Municípios (que, em parte, já o têm na aplicação do Programa 1.º Direito) é apenas o de proteger o Governo caso o programa “Construir Portugal, Nova estratégia para a habitação” falhe, e transferir para os Municípios a responsabilidade pelo seu insucesso e aplicação do PRR. Ou seja, se correr bem os louros são da estratégia do Governo, se correr mal foi incapacidade dos Municípios. São conhecidas as assimetrias geográficas nesta matéria, resultado da pressão imobiliária diferenciada pela procura (por exemplo por profissionais em mobilidade dos setores da saúde, educação ou forças de segurança), pelo turismo, pela escassez de terrenos ou imóveis públicos (património municipal), pelos anos em que a opção política e ideológica afastou a habitação das prioridades de alguns municípios (responsabilidade reservado ao Estado e ao mercado), sem esquecer a crise de mão-de-obra no setor (que será agravada pelas políticas migratórias) ou a ilusão de que a iniciativa privada venha a promover construção de habitação para a classe média e média baixa, nomeadamente a custos controlados.
A crise habitacional tem uma avaliação já mais que elaborada: o descontrolo e a liberalização do Alojamento Local, os vistos gold e os fundos de investimento. No fundo a transformação dos imóveis em ativos de rentabilização financeira e um mercado global de imobiliário que irrompeu, descontroladamente, em Portugal, bem distante dos baixos rendimentos dos portugueses e das famílias.
É importante um forte investimento do Estado nesta matéria, seja como promotor, financiador ou regulador do setor.
Porque há muito poucos contextos em que a dignidade humana descerá tão baixo como a condição de sem-abrigo, de não ter um lar. E já há quem, trabalhando, com rendimentos, se veja obrigado a dormir ao relento ou em refúgios.
Publicado na edição de hoje do Diário de Abeiro (pág. 7)