A história (também) é responsabilidade
sem medo da verdade da história.
Publicado na edição de hoje, 6 de maio, do Diário de Aveiro.
Há sempre a tentação de reescrever a história cada vez que a revisitamos. Mas é igualmente verdade que a história deve ser assumida com frontalidade e com responsabilidade e que o reconhecimento dos erros cometidos (e que serão sempre herdados na evolução da própria história) é sinal de elevação, respeito e dignidade.
Tal como disse Marcelo Rebelo de Sousa, varrer os erros da nossa história para debaixo do tapete pode não significar reescrever essa história, mas será, no mínimo, deturpá-la ou desformar a sua realidade, mesmo que temporal e contextualmente.
Na passada semana, o Presidente da República levantou a necessidade de Portugal assumir os danos da colonização, quer nos países colonizados, quer nos seus povos. Acrescentaria eu, quer naqueles que, pela descolonização, foram obrigados a “retornar”, quer nos que, hoje, pelo enraizamento colonial, são vítimas da exclusão e do racismo devido às suas origens ou descendência.
Não estamos a falar de um percurso de há séculos da nossa história, o que, por si só, teria igual valor (basta recordar, para aqueles que, hoje, na Assembleia, gostam tanto de bater com a mão no peito, que o Papa João Paulo II assumiu, em 2006, os erros cometidos pela Inquisição, entre os séculos XIII e XVII).
Estamos a falar de um colonialismo com pouco mais de 50 anos, o que, para a história, representa muito pouco tempo… foi “ontem”. E apropriando as palavras de João Paulo II, “as lições que vêm da História nunca estão terminadas” e, por isso, Portugal não deve, nem pode esconder ou ter medo da verdade.
É apenas isso que está em causa. Não é encontrar culpados ou julgar alguém e, muito menos, pura e simplesmente, pagar como quem vai às compras ao hipermercado (há quem aponte um valor de indemnização ou reparação histórica de 30 triliões de dólares vezes 10 mil).
Mas o que também não colhe é o argumento do descobrimento, do que Portugal deu ao mundo. Tal não pode servir de encobrimento, de negação, porque na balança entre o “deve e o haver” foi maior a exploração, o crime e o desrespeito pela dignidade, pela soberania, pela liberdade e pelos direitos, do que as benfeitorias, muitas delas mais em proveito de Portugal ou de alguns, em detrimento das mais-valias para muitos (os colonizados). Retirámos mais do que demos ou fizemos.
Ao contrário do que defendeu Rui Rocha, do IL, no Parlamento, a história pode não ser dívida, nem penitência… mas os erros sim, são e devem ser.
São conhecidas e possíveis várias formas de reparação dos erros da história, para além do fácil e cómodo “pedido de desculpa” e do que, à luz dos acordos, resulta num natural processo de cooperação entre países. Tal como o fizeram (e fazem) alguns países europeus: França, Alemanha, Suíça, Países Baixos ou Bélgica, para além da restituição de património cultural, importa que o processo educativo e formativo, quer no ensino, quer no património museológico, seja transparente na factualidade histórica apresentada e representada; ou urge garantir processos migratórios dignos e justos.
Mas mais relevante é a reparação da memória, garantindo melhores condições de vida aos descendentes colonizados e combatendo o racismo e a discriminação que proliferam e crescem em relação a estes. Ao contrário de histerismos populistas e vestes rasgadas, por alguns, no Parlamento, Portugal também é dos guineenses, angolanos, timorenses, de todos os que descendem da história colonialista. Como é dos antigos combatentes e dos despojados obrigados a regressar a Portugal.
Se há factos na nossa história que nos desonram, assumir e reparar os erros significa responsabilidade e dignidade. Cada geração herda os erros da que a antecede, como as futuras herdarão os nossos erros. É isso que constrói a História de um povo.
(Diário de Aveiro, página 8, 06MAI2024)