A imbecilidade da democracia
Publicado na edição de hoje, 18 de março, do Diário de Aveiro (página 10)
Teríamos que recuar mais de 40 anos para nos lembrarmos da última greve geral dos jornalistas (1982) que, por curiosidade ou, quem sabe, por destino, foi convocada em plena governação liderada por Francisco Pinto Balsemão. Coincidências.
O dia 14 de março, volvidos 42 anos, não ficará na história marcado apenas (e isso seria, por si só, mais que suficiente) pela revolta e pelo grito de desespero e alerta, mais que justificado, de muitos jornalistas que se confrontam, dia a dia, com a precariedade laboral e salarial, com a falta de sustentabilidade do setor e o permanente fantasma do despedimento, com a pressão e a exaustão profissional, com a perseguição, calúnia e ataques pessoais e profissionais. Só por tudo isto já seria mais que legitimada a paralisação e manifestação pública dos profissionais do jornalismo.
Mas há mais… o dia 14 de março de 2024 é também um alerta e um grito da própria democracia, dos valores da liberdade, do essencial direito a informar e a ser informado, com rigor, com verdade, com o contraditório, com o escrutínio e a investigação que garantem a factualidade da realidade e dos contextos das dinâmicas da sociedade.
Paradoxalmente, é a própria democracia que facultou o espaço para muitos que, em total desprezo pelos pilares do Estado de Direito e pela liberdade, pulularam nas redes sociais (sempre atrás do escudo de um mero teclado) para criticarem, acusarem e atacarem todos os que se manifestaram pelo legítimo direito a defenderem a sua profissão e o seu sustento, por todos os que se manifestaram por si e pelos outros (sociedade) em defesa da democracia. Houve até quem se regozijasse e congratulasse por não haver notícias, nem informação.
Os mesmos que acham que só a verdade dos próprios é a única, os mesmos que preferem o caos e o anarquismo do espaço digital onde proliferam à custa da desinformação, da falsidade e da mentira, face à ausência de escrutínio e dos factos. Os mesmos que afirmando-se contra o sistema, aproveitam-se dele para o destruir e, com isso, destruir a democracia. Umas vezes só porque sim, outras por clara convicção.
A esses é importante recordar que é muito fácil ser-se fascista e populista numa democracia. Difícil mesmo é ser-se livre e lutar pela democracia em plena ditadura.
E foi, também, contra esta imbecilidade democrática, esta liberdade que permite que haja quem se aproveite da democracia para a fragilizar e corromper (tão espelhada no quadro eleitoral recente) que os jornalistas se manifestaram na quinta-feira passada. Contra aqueles que pretendem condicionar ou silenciar uma informação livre e rigorosa, que pretendem descaracterizar o jornalismo e o papel que os jornalistas desempenham na estabilidade da democracia e do Estado de Direito.
Uma democracia sem um jornalismo forte ou fortalecido é uma democracia frágil e sujeita aos mais vis ataques à liberdade e aos mais elementares direitos e garantias.
Importa recordar o título de um artigo da jornalista Margarida Davim, publicado no Diário de Notícias (22 de fevereiro de 2024): “A fome que passamos deixará todos sem voz”. Nesta frase cabe toda uma realidade que nos devia preocupar a todos.
Sempre que um jornalista se cala, sempre que um órgão de comunicação social fecha portas, deixa de ser ler e de se ouvir, é menos um espelho da realidade que não é noticiado, é menos uma voz de um partido e de um político (mesmo os que, injusta e infundadamente, criticam e acusam) ou de uma instituição que se faz ouvir, é menos uma voz que defende os mais frágeis e desprotegidos, é menos um eco das dinâmicas e do pulsar das comunidades (freguesias, municípios, regiões, tecido associativo, social e económico, …) que se fará ouvir ou ler… é menos um compromisso de liberdade e de pluralidade.
Sempre que um jornalista é preso, assassinado ou morre no exercício da sua profissão, que mais não é do que um serviço a bem da sociedade e do público, é a democracia que perde e sai fragilizada. Só em 2023 foram mortos 140 jornalistas e 521 encontravam-se presos (fonte: RSF). É também neste contexto de risco que o jornalista exerce a sua profissão só para que a realidade seja notícia e chegue a cada um de nós. Não há nenhuma contrapartida económica em cada notícia dada a não ser a liberdade de informar e o brio do desempenho e dedicação profissional.
Atacar, condenar, ofender, perseguir e ameaçar o “mensageiro” é condicionar, pressionar, calar e demudar a realidade e a liberdade.
Paradoxalmente é esta imbecilidade democrática que paira sobre a sociedade portuguesa nos 50 anos do 25 de Abril de 74: o ataque à sua essência, aos seus valores e aos seus pilares.
Não nos preocuparmos com estes gritos de alerta, com estas realidades anunciadas, é permitirmos, todos, enquanto sociedade, que ditas e camufladas “vozes e votos de protesto” minem o sistema, fragilizem as liberdades e os direitos, e corroam a democracia. E, simultânea e infelizmente, alimentem a “fome” de quem trabalha e se empenha pela verdade, pela informação livre e rigorosa, com de dedicação, zelo e profissionalismo.
Pela democracia.
(fonte da imagem: euronews)