A machadada presidencial
publicado na edição de hoje, 25 de outubro, do Diário de Aveiro.
Debaixo dos Arcos
A machadada presidencial
A legitimidade da indigitação de Passos Coelho como Primeiro-ministro é um acto da maior elevação constitucional e democrática. A legitimidade da indigitação de António Costa para Primeiro-ministro não é uma questão de inconstitucionalidade mas sim de uma questão de legitimidade política. E muitas das críticas que fiz, e que permanecem, ao acordo PS-BE-PCP residiram nesta vertente: o respeito pela democracia e pela legitimidade individual do voto dos portugueses. Acresce ainda a debilidade e a fragilidade do compromisso à esquerda. Não faz sentido repetir o que nas últimas semanas já aqui referi quanto ao acordo PS-BE-PCP. A obsessão do PS pelo poder e o querer disfarçar o choque pela inesperada derrota eleitoral tolda, aos socialistas, a visão política da realidade e do papel do partido na conjuntura. BE e PCP foram mais que claros e transparentes: o importante não é o PS ou o compromisso; isso é um mero meio para atingir o objectivo. O importante é que, a todo o custo, custe o que custar, PSD e CDS não governem. É esta a realidade do compromisso à esquerda, é este o objectivo final, é este o respeito e o sentido democrático e a noção de democracia para BE e PCP. E a fragilidade do compromisso não reside, essencialmente, nos tão badalados contextos europeus. Isso é o mal menor. O que separa PS do BE e PCP, só na política interna, é mais do que muito: papel do estado, os processos de privatizações, as reformas na justiça, na saúde (os hospitais SA não são inovação do psd-cds), na própria educação (muito para além dos professores), a relação com o sistema bancário e financeiro, as PPP’s, etc. Por alguma razão BE e PCP não assumiram lugares de governação. O compromisso tem um prazo, é frágil. E não colhe a retórica balofa do “papão do comunismo” ou de algo que ficou por resolver a 25 de novembro de 75 (isto, cabe muito mais à tal esquerda traumatizada). Mas a verdade é que não é fácil esquecer George Orwell e o seu “Animal Farm”: «todos os animais são iguais mas há uns mais iguais do que outros».
Importa, apesar de tudo o que foi descrito, reconhecer outra realidade dos actuais factos políticos, a bem da verdade. Os formalismos políticos e constitucionais são, pelo respeito pela democracia e pela legitimidade, importantes e devem ser respeitados. Cavaco Silva não fez perder tempo ao país na indigitação de Passos Coelho como Primeiro-ministro. Este é o respeito constitucional que tantas vozes, ao longo destes quatro anos, reclamaram. O tempo perdido por Cavaco Silva foi a não leitura imediata dos resultados, as não audições imediatas aos partidos com assento parlamentar e, face ao que era mais que previsível, a não mediação de um compromisso Coligação-PS (fosse ele qual fosse). O decurso político destas três semanas tão afastado do papel do Presidente da República e do Palácio de Belém é da inteira responsabilidade de cavaco Silva. E mais grave essa (ir)responsabilidade se torna após o discurso de quinta-feira passada. Quando se esperaria que um Presidente da República fosse o garante da Constituição e do respeito pela Democracia, eis que surge, mais uma vez Cavaco Silva para estragar tudo... e estragar significativamente. Bastava ao actual Presidente da República a dignidade institucional e de sentido de Estado para apenas cumprir um (necessário e legítimo) formalismo constitucional. Mas não... Cavaco Silva tinha necessidade de ir mais longe, satisfazer o seu ego partidário, e transformar-se no que, na prática, sempre teve dificuldade em ser: político (em vez de tecnocrata). Tanto que o feitiço virou-se contra o feiticeiro e indigitando Passos Coelho assinou também a sua demissão. O discurso de Cavaco Silva é uma enorme machadada no respeito pela democracia e no que foi, legitimamente, o sentido crítico de muitas vozes em relação ao compromisso à esquerda. Qualquer democrata, qualquer defensor da liberdade e do pluralismo, e, por todo e qualquer acréscimo de valor, um Presidente da República, não tem qualquer legitimidade, direito institucional ou moral política, para menosprezar, ignorar, banalizar ou ostracizar/marginalizar, os votos, a representatividade (eleitoral e parlamentar) e a legitimidade democrática da existência política do Bloco de Esquerda ou do Partido Comunista Português. Muito menos, ou ainda, desrespeitar a própria Assembleia da República. A Cavaco Silva só faltou relembrar as palavras de Galvão de Melo (no período quente do PREC, em 75, numa convulsão social intensa), em Rio Maior: «os comunistas deviam ser empurrados até ao mar para aí morrerem de morte natural”. E com tudo isto apenas reforçou o que tanto se criticou: um acordo mais sólido à esquerda e o aumento da aversão da esquerda radical à actual coligação da direita.
Serão poucos, como dizia um socialista na noite eleitoral, são pouquinhos, os portugueses que agradecerão a Cavaco Silva os dez anos de exercício da mais alta magistratura do Estado Português. Ficarão na história, é certo… pela piores e mais tristes razões.