À vontade não é à vontadinha... em defesa da democracia
Tenho um enorme respeito e uma elevada consideração por António Barreto, sociólogo, político e ex-ministro do I Governo Constitucional, que enfrentou, de forma superior, o processo da Reforma Agrária (para desencanto de alguns).
Muito raramente tendo a discordar ou, por norma, "bebo" cada uma das suas palavras. Mas nem sempre. E hoje é um desses contextos.
No seu artigo de opinião semanal no jornal Público (versão paga - 27-01-2024 - "Prova de Fogo") António Barreto critica a previsível não autorização para a realização de uma manifestação agendada para 3 de fevereiro, na área do Martim Moniz, em Lisboa, "Manifestação Contra a Islamização da Europa", tendo como pressuposto a democracia e a liberdade de expressão e manifestação.
António Barreto refere, determinada altura do seu texto...
A ideia de que se pode proibir alguém, racista, xenófobo ou antidemocrata, de pensar, ter opinião e divulgar os seus pontos de vista é um grave passo atrás na democracia, é uma perversão da tolerância, é um atentado contra alguns dos direitos e liberdades fundamentais da democracia.
O direito a manifestação de todos os cidadãos, protegido pela lei, sem qualquer autorização, é igualmente intocável.
Ora, é precisamente esta a conclusão com a qual tendo a discordar.
Não há, na nossa Constituição ou no nosso universo jurídico, nem no direito internacional, nenhum direito absoluto. Nem o próprio direito à vida que, em determinadas circunstâncias e contextos tem condicionalismos e obstáculos.
Todos os direitos enfrentam limites e restrições, nomeadamente no confronto ou quando colidem entre si.
Mas não está em causa, em si mesmo e num sentido abstrato, qualquer limitação à liberdade da expressão ou de opinião. Ninguém está limitado nesse exercício ou de ter as suas convicções ou opiniões individuais.
No entanto, a liberdade de expressão e a liberdade de manifestação encontram as suas limitações quando em causa estão direitos fundamentais como a segurança ou o ataque ao direito que cada um tem à sua religião, credo, origem étnica ou nacionalidade. Aliás, assim como o direito fundamental de deixar o seu país e escolher uma nova nacionalidade.
Não está em causa a limitação de uma liberdade individual e pessoal, legítima mesmo que discordante, mas sim uma ação coletiva que confronta outros direitos, liberdades e garantias.
É, aliás, a própria Constituição e o Código Penal, a título de exemplo, que criminaliza ações de ódio racial e xenofobia de forma bem vincada.
Está em causa, acima de tudo, realizando-se a manifestação, um claro atentado ao direito da personalidade daqueles que são visados por uma supremacia racial e étnica inaceitável e condenável.
Mas para além da questão da liberdade, há ainda, e não menos importante (antes pelo contrário), o foco na democracia e no Estado de Direito.
Não é, como refere António Barreto, uma questão da democracia ser mais ou menos frágil. É, por outro lado, a necessidade de defender e preservar essa mesma democracia e o Estado de Direito democrático de ações e conceções que têm como objetivo claro a destruição dos valores e princípios estruturais dessa mesma democracia e desse Estado de Direito.
A democracia tem limitações, regras, princípios que não se compaginam com quem atenta e pretende destruir os seus valores e a sua sobrevivência.
Tomar apenas como princípio de defesa da democracia a sua força e a sua consistência é um risco demasiado elevado que, pela história do último século e pela atual conjuntura política e social que atravessamos em vários pontos do planeta (Europa, América do Sul, Médio Oriente, etc.), importa não correr e não desvalorizar. Porque mesmo os bravos e os mais fortes tombam em combate. E por mais forte e sólida que seja uma democracia, nada garante que a mesma não possa ser derrubada se não a soubermos proteger ou defender de quem a ataca, mina e despreza.
A melhor forma de garantir uma democracia forte e consistente é defender, por todas as formas, o direito fundamental da dignidade da pessoa humana e das suas liberdades e garantias, é não permitir retrocessos civilizacionais, culturais e sociais, que, esses sim, deterioram a democracia e o Estado de Direito.
De uma forma simplicista e popular, é caso para dizer que "à vontade não é (nem nunca deverá ser) à vontadinha".