Arde demasiado na Serra da Estrela que também é Portugal
para lá do horizonte do Terreiro do Paço fica e ficará sempre a província (mais ou menos distante).
(crédito da foto: Patrícia de Melo Moreira/AFP, in 'Contacto')
Começou na madrugada do dia 6 de agosto, no Município da Covilhã, abrangendo ainda os municípios da Guarda, Manteigas, Celorico da Beira e Gouveia... já lá vão 10 dias e a Serra da Estrela, um dos maiores patrimónios naturais do país, não para de arder.
Com dados ainda provisórios, a Serra da Estrela já perdeu perto de 30 mil hectares de florestação, o que dá, aproximadamente quase 28 MIL campos de futebol. Ao todo, Portugal é, nesta data, o terceiro país da Europa (Espanha, Roménia, Portugal e França) com maior área ardida (bem acima dos 80 mil hectares), num total europeu de 660 mil hectares. E a somar, face às situações ativas que têm sido notificadas.
Um dos principais pulmões e património florestal do país (a par com o Gerês, Montesinho, Marão ou o Parque Natural do Tejo Internacional) está fortemente devastado, como devastados ficaram campos agrícolas, território e património habitacional, sem esquecer os animais (sejam os selvagens, sejam os de criação ou domésticos) e muitas famílias que perderam muitos (nalguns casos todos) dos seus recursos e sustento.
Em si mesmo, o incêndio florestal - excluindo a riqueza (toda ela e de forma abrangente e transversal) do Parque Natural da Serra da Estrela - não difere de outros contextos. Talvez na sua dimensão, extensão e duração, sendo que já provocou, igualmente, 21 feridos ligeiros, 3 graves e 45 pessoas deslocadas.
Mas este flagelo na Serra da Estrela traz-nos muito mais que isso.
Mostra-nos um país com duas ou mais realidades, vivências e prioridades. Não... Portugal não é um todo. Quanto muito um somatório de várias partes - partes desiguais, diferenciadas, (in)discriminadas e assimétricas
É, por isso, incompreensível e criticável a posição do atual líder do PSD sobre o adiamento (indeterminado) da Regionalização, só percetível para quem desconhece ou, voluntariamente, ignora a realidade territorial, nomeadamente a assimetria da interioridade.
E é isto que a devastação da Serra da Estrela, a aflição e pavor das suas gentes e habitantes, o desespero, os alertas e os apelos dos Autarcas (Câmaras Municipais e Freguesias), também nos mostra, para além dos cenários dantescos do terror das chamas. E muita coisa falhou...
- Falhou a coordenação e a estratégia de abordagem, combate e controlo do incêndio inicial: quer nos meios, no planeamento e na ação/intervenção. Salve-se, mais uma vez (e sempre) o esforço dos bombeiros, das forças de segurança, das populações e das proteções civis municipais. E sim... a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil desvalorizou e menorizou a Serra da Estrela (longe dos gabinetes da capital).
- Falhou um Estado que há décadas, pelo menos há cerca de quatro, não consegue definir regras e uma estratégia de florestação do país e das nossas matas, balanceada na importância ambiental e nos recursos e rendimentos económicos dos cidadãos e empresas.
- Falhou um Estado e uma Justiça que não criam mecanismos mais eficazes de prevenção e criminalização dos atos criminosos dos que não respeitam, deliberadamente ou não, a natureza, o bem comum e o património individual.
- Falhou uma comunidade que não sabe ou não consegue tratar do seu valor e da sua riqueza natural, por desleixo, por incúria ou por incapacidade, maioritariamente alicerçada no abandono das terras devolvidas ao esquecimento.
E falhou um país (ou parte dele) e um Estado excessivamente centralista e que apenas olha para o umbigo da capital. Sim... não vale a pena virem as "virgens ofendidas" do costume. Portugal tem várias realidades, várias dimensões, zonas ricas e zonas desprotegidas e desvalorizadas, não pela realidade em si, mas porque o poder assim o determina. Portugal é demasiado e excessivamente assimétrico, com clara desvantagem para o seu Interior ou para as zonas que vão para além das duas Áreas Metropolitanas. Infelizmente, o "espírito provinciano" ainda faz parte da nossa cultura política, governativa, empresarial/económica e social.
A Serra da Estrela há 10 dias (DEZ DIAS) que arde... há 10 DIAS que Celorico da Beira, Gouveia, Manteigas, Guarda e Covilhã desesperam... há 10 DIAS que 'A Serra', agora (repete-se, agora) "ocupa" 1.400 operacionais, 331 meios terrestres e 14 meios aéreos, já perdeu uma área (parte do Parque Natural e património nacional) quase 2,5 do Parque Natural de Sintra-Cascais, 60 vezes a Serra de Sintra ou 30 vezes o Parque Florestal de Monsanto. Tivesse ocorrido a tragédia nesses pontos e seria bem provável a interrupção das férias do Primeiro-ministro, a presença do Ministro da Administração Interna e/ou da Ministra do Território, sem esquecermos, obviamente a presença de Marcelo Rebelo de Sousa.
Mas não... a Serra da Estrela é na província, lá longe da capital. Onde faltam os recursos, os meios, o planeamento, a estratégia, o investimento, onde se recolhem menos impostos, há menos eleitores e menos deputados.
É impensável, num país como Portugal que um incêndio dure 10 dias. Há 10 DIAS que um dos grandes e maiores patrimónios naturais do país vai colapsando.