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Debaixo dos Arcos

Espaço de encontro, tertúlia espontânea, diz-que-disse, fofoquice, críticas e louvores... zona nobre de Aveiro, marcada pela história e pelo tempo, onde as pessoas se encontravam e conversavam sobre tudo e nada.

As rosas têm espinhos

sobre o Dia Internacional da Mulher

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Propositadamente escrito ontem (Dia Internacional da Mulher) e, igualmente, publicado hoje, a propósito.

Há o argumento (válido e legítimo) tantas vezes usado de desvalorização das efemérides, ou de algumas efemérides, sob o pretexto da inércia e indiferença nos restantes 364 dias do ano. É verdade... é a contestação da realidade, da triste realidade, de inação e de ausência de atitude, individual e coletiva, perante factos e contextos, em muitas das situações a roçar a hipocrisia.
Mas apesar disso - ou, eventualmente, por causa disso - o chamado "Dia de..." merece ser referenciado por uma questão de memória, de exaltação, para focar e relembrar a(s) realidade(s), para valorizar e enaltecer as causas e aqueles que por elas lutam (e sofrem) nos tais 365 dias.

Ontem foi "dia de"... Dia Internacional da Mulher. Um dos outros 365 dias do ano em que, inaceitavelmente, as mulheres são, em pleno século XXI, causa social e humanitária, motivo de luta em defesa da plenitude dos mais elementares direitos humanos.
Hipocritamente, refugiamo-nos no óbvio, no mais natural e no mais fácil: a legitimidade individual de enaltecermos as avós, as mães ou as mulheres e as filhas. O contrário seria perfeitamente contra-natura. Ninguém pode (ou deve) ficar indiferente ao papel que cada uma das várias mulheres desempenharam e marcaram nas nossas vidas, no nosso percurso e formação. Que mais não seja (e haverá sempre muito mais) pelo facto de terem sido elas que possibilitarem a nossa existência.
Hipocritamente, multiplicam-se os exemplos de "cortesia" laboral, como o caso da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil que possibilitou que as mulheres saíssem 1 hora e 13 minutos mais cedo do trabalho. Era interessante perceber os critérios e princípios defendidos na promoção de condições de igualdade profissional e de progressão nas carreiras, no mundo laboral no resto do ano.
Hipocritamente, a sociedade pretende transformar este Dia Internacional da Mulher num mercantilismo "natalício" (todo um universo de "promoções comerciais") ou de S.Valentim (os floridos ramos de rosas... e espinhos), ofuscando a verdadeira essência da efeméride e a memória histórica e social que lhe está adjacente: o movimento sufragista iniciado no Reino Unido, em 1897, por Millicent Fawcett e continuado, em 1903, por Emmeline, Christabel, Sylvia e Adela Pankhurst, e, após 1908, a sua 'internacionalização' a partir dos Estados Unidos, Alemanha, Áustria, Dinamarca e Suíça; as 125 mulheres que morreram no incêndio da fábrica da Triangle Shirtwaist (25 de março de 1911 - Estados Unidos); ou as manifestações das trabalhadoras, por melhores condições de vida e trabalho, na Rússia czarista (8 de março de 1917), precipitando o início da Revolução de 1917.

A luta pela igualdade política e social, pelas melhorias das condições de trabalho e igualdade salarial, iniciadas há cerca de 125 anos, tiveram, diga-se, evoluções importantes. Só que a realidade mostra-nos que o óbvio e o natural (a condição da essência humana que iguala homens e mulheres nos direitos, liberdades e garantias, independentemente das suas diferenças e características fisiológicas) ainda é, infelizmente e inaceitavelmente, um longo percurso a percorrer.

É inqualificável e abjeta a realidade da condição feminina das mulheres em muitas partes do mundo: o Afeganistão é considerado o país mais repressivo do mundo para as mulheres; é conhecida a contestação social vivida no Irão ou as manifestações promovidas, ontem, no Paquistão; as mulheres são as primeiras vítimas (como as crianças) da guerra na Ucrânia; o Brasil registou um aumento de 5% nos casos de femicídio no ano passado, com 1,4 mil mulheres mortas, ou seja, uma a cada seis horas (segundo o Monitor da Violência e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública); na Austrália (para introduzir, aqui, a realidade das sociedades ou dos países ditos desenvolvidos, uma em cada quatro mulheres sofre violência sexual durante a vida.

Mas Portugal não é, de todo, o paraíso...
A verdade - que importa sobrepor ao 'ofensivo' mercantilismo ou ao 'secretismo' das piadas de tasca e taberna sob a capa da "inocência" do dia 8 de março - é que volvidos quase dois séculos é importante realçar:
- em 2022 foram assassinadas 24 mulheres em contexto de violência doméstica. No mesmo período, os Gabinetes de Apoio à Vítima (GAV) do Ministério da Justiça realizaram mais de 9.500 atendimentos em 2022 e apoiaram 1.619 vítimas de violência doméstica;
- estima-se que existam mais de 6.500 mulheres portuguesas, com mais de 15 anos, excisadas (vítimas de mutilação genital feminina, total ou parcial), sendo que em 2022 registaram-se 190 casos;
- 62% das mulheres em Portugal consideram ter menos independência financeira do que os homens. E a propósito, apesar de as mulheres têm níveis de escolaridade mais elevados (em 2022, entre a população ativa - empregada e desempregada - 42% das mulheres tinham o ensino superior como nível de escolaridade, contra apenas 27% no caso dos homens), os salários das mulheres são, em média, 14% inferiores aos dos homens. Curiosamente é entre as funções mais qualificadas que a diferença é mais acentuada: 24,5% entre os quadros superiores, 14% entre os quadros médios e 16,5% entre os profissionais altamente qualificados;
- as mulheres têm vínculos mais precários que os homens e estão cada vez menos protegidas no desemprego, representando mais de 53% da população desempregada (359 mil mulheres); e só 31% dos gestores nas empresas de topo são mulheres, no ensino superior apenas 19% dos cargos de chefia são ocupados por mulheres e só 24% dos professores catedráticos são mulheres.
Mas não se pense que o problema das mulheres com as desigualdades se compagina à questão laboral ou económica. Como diz, no Expresso, o Henrique Raposo (de quem não sou grande apreciador) o problema das mulheres não está só no "patrão" (trabalho)... também está no "marido" (casa). Por norma, é a mulher que dá assistência aos filhos e à família, sendo-lhe exigida uma conciliação da vida pessoal, profissional e familiar distinta da do homem, multiplicando a sua jornada de trabalho, sendo, demasiadas vezes e por isso, penalizada na sua carreira. Basta lembrar, por exemplo, os recentes e conhecidos casos políticos de Sanna Marin (Primeira-ministra da Finlândia) e as demissões de Jacinda Arden (Primeira-ministra da Nova Zelândia) e de Nicola Sturgeon, a (primeira) Primeira-ministra da Escócia.

Já para não falar da pressão e chantagem, do assédio, da misoginia enraizada na cultura patriarcal portuguesa, que teima em crescer (contrariando o que seria expectável): na política, apesar das quotas de género, só há 84 mulheres (37%) na Assembleia da República, num total de 230 deputados, e nas Autarquias apenas 9% dos presidentes de Câmara Municipal são mulheres (29 mulheres em 308 autarcas).

É, por tudo isto, demasiado importante o dia 8 de março, como o são (mesmo que mais) os restantes dias do ano. As mulheres não precisam de "rosas e promoções comerciais", tão ofensivas como os "parabéns por este dia".

A igualdade de direitos, liberdades e garantias, entre géneros, não é nenhum favor que a sociedade e os homens fazem às mulheres: é um DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL. No dia 8 de março... e todos os dias.

(fonte dos dados nacionais: INE)