BE e o trauma de 2011
o fantasma do regresso a um mau passado
(crédito da foto: Paulo Cunha / LUSA)
Conheci quem, de forma irónica, contava episódios da guarda/vigilância dos quartéis, durante a infeliz história da guerra colonial, com a seguinte expressão: «primeiro disparava-se e depois é que se perguntava "quem vem lá?!"».
O Bloco de Esquerda traz-me à memória essa expressão, contextualizada metaforicamente na posição política que assumiu em 2011 e, mais recentemente, no chumbo do Orçamento do Estado para 2022, há pouco mais de um mês. Curiosamente, ou não, ambas as situações perante um Governo do PS (José Sócrates e António Costa, respetivamente).
Em 2011, veio a crítica ao PEC IV e a votação da Moção de Censura. Agora, veio o chumbo à proposta do Orçamento do Estado para 2022, logo na primeira votação (na generalidade). Em ambos os casos, primeiro os "disparos políticos" (a concretização das opções) e só depois é que perguntam/questionam pelas consequências dos seus próprios actos.
Também em ambos os casos, as perspectivas dos impactos nos próximos resultados eleitorais (as legislativas em 2022 são já no dia 30 de janeiro) não se afiguram animadoras para os bloquistas.
E não só... não são apenas os eventuais ou hipotéticos fracos resultados nas urnas que entram nesta equação. O BE mediu mal as consequências das opções que tomou, mesmo tendo sido as mais lógicas e mais coerentes face o discurso adoptado, perante as circunstâncias.
É fácil enumerá-las.
1. Quebrada a relação de confiança com o PS e o Governo, abdicando da última hipótese negocial com a discussão da proposta do OE em sede de especialidade, era mais que óbvio que a geringonça iria quebrar pelos elos mais fracos: BE e PCP. Daí que, para os portugueses (e para muitos militantes e eleitores dos dois partidos) a responsabilidade do fim de uma "relação política" de 6 anos cabe, em grande parte, ao BE e ao PCP.
2. Apesar de não haver histórico na democracia portuguesa, nem obrigação Constitucional, era mais que óbvio e esperado, muito por força da crispação e falta de entendimento da esquerda, que o Presidente da República dissolvesse o Parlamento. Não havia nenhuma garantia, nem perspetiva de entendimento ou de cedência entre as partes que colocasse a hipótese da viabilização de um novo Orçamento.
Usar este argumento ('nada obrigaria a eleições antecipadas') é, manifestamente, um fraquinho "sacudir a água do capote" e não assumir as responsabilidades das opções tomadas.
3. Mas o maior impacto do chumbo orçamental, a maior consequência do erro estratégico da esquerda (incluindo a "facção negociadora" do PS/Governo na Geringonça) é a eventual capacidade de resposta do PSD neste contexto eleitoral (finalizado o processo eleitoral interno dos sociais-democratas)... seja por uma (mesmo que hipotética e matemática) possível vitória eleitoral (regressando o fantasma de 2011 e, mesmo, de 2015 - lembremo-nos que foi o PSD que venceu essas eleições), seja por uma realidade que ganha cada vez mais força e dinâmica, chamem-lhe ou adjetivem da forma que quiserem, mas para simplificar conceitos será sempre o Bloco Central e a aproximação do PSD de Rui Rio ao PS de António Costa (ou vice-versa, seja qual for a ordem dos factores oriundos dos resultados eleitorais de janeiro do próximo ano).
Afigurando-se, hoje (desde 2019) e no actual contexto, um notório afastamento do PS/Governo ao BE e ao PCP, crispadas e agrestes que estão a relação e as acusações/críticas entre os ex-parceiros da defunta Geringonça - o que inviabilizará uma nova relação política - a verdade é que a Esquerda dá sinais de muita ansiedade e algum desnorte, de percepção de uma realidade política e eleitoralmente bastante desfavorável, e, acima de tudo, de muito ciúme partidário deste hipotético namoro (e até "união de facto") ao centro, entre PSD e PS.
Não são, por isso, de estranhar declarações e 'piscar de olhos' que tentem amaciar a tensão política à esquerda, mesmo que para tal se passe uma esponja sobre um passado bem recente (pouco mais de um mês de 'luto'): "Catarina Martins não fecha a porta a um apoio a um governo liderado pelo PS. Pede que maioria absoluta dos socialistas seja evitada e diz que com a direita não haverá "solução" (Observador).
Daqui até um possível (mesmo que forçado) anúncio de disponibilidade para uma possível entrada num Governo PS vai um saltinho. Mas será que Catarina Martins e o BE ainda vão a tempo?