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Debaixo dos Arcos

Espaço de encontro, tertúlia espontânea, diz-que-disse, fofoquice, críticas e louvores... zona nobre de Aveiro, marcada pela história e pelo tempo, onde as pessoas se encontravam e conversavam sobre tudo e nada.

Cai o pano eleitoral. Até quando resistirá a nossa democracia?

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(fonte: Jornal Notícias - infografia de Isidro Costa e Tiago Coelho)

Publicado na edição de hoje, 25 de março, do Diário de Aveiro (página 10)

Concluída a contagem dos votos dos dois círculos da emigração cai o pano sobre os resultados das Legislativas de 10 de março de 2024.

Não há nada mais que óbvio do que considerarmos que quem vence uma eleição é quem, nem que seja por um voto, é o mais votado. Nada mais simples. Portanto, tendo a AD conquistado cerca de mais 50 mil votos que o PS (poucachinho, diga-se) é quem vence as Legislativas de 2024. Isto é o que nos dizem os números publicados, neste sábado, no Diário da República (Mapa Oficial n.º 2-A/2024, de 23 de março).
Outro dado relevante é o número elevado de votantes fazendo cair a taxa de abstenção para os 40,1%, a mais baixa desde as eleições de 2005. Cerca de 60% (59,90%) dos eleitores usaram o seu legítimo, livre e democrático direito ao mais fundamental princípio básico da cidadania: o voto. Apesar de se ter registado, desde 1976, um dos valores mais altos de votos nulos, 192.396 (o segundo mais alto).
E se não se comenta o voto, em si mesmo, porque ele representa a vontade e a opção individual de cada eleitor, coisa diferente é a reflexão que o impacto, as consequências e a substância política desse exercício suscitam.

Comecemos pelo menos complexo. A esquerda teve um decréscimo acentuado de deputados, ao ponto de não garantir, no quadro Parlamentar, uma alternativa governativa. Isto, apesar do aumento do número de deputados do Livre, do facto do BE manter estável o seu grupo e do PAN manter a sua única representação no hemiciclo. Mas a queda do PS, por força da perda da maioria (já que em relação a 2019, por exemplo, o eleitorado é praticamente estável), e também do PCP são notórias. Por outro lado, face à diferença mínima registada em relação ao PS, à estagnação eleitoral em relação às duas últimas provas de fogo eleitorais de Rui Rio, à dependência política de terceiros, à incerteza quanto ao “não é não”, tornam os resultados do PSD numa evidente “vitória de Pirro”. Nem é a questão de saber a pouco… não sabe a nada, mesmo.

Resta o mais evidente, mesmo que perigoso, dispensável e condenável: o resultado da extrema-direita que quadruplicou a sua bancada parlamentar e triplicou o número de eleitores, em relação a 2022.
Não é mais do que a democracia a funcionar em plenitude, mas também não deixa de ser a própria democracia a autoflagelar-se, colocando-se à prova, com todos os riscos inerentes.
Importa, neste contexto, desconstruir um conjunto de “mitos urbanos” que se criaram à volta deste pulsar do extremismo radical.

O crescimento do Chega assentou numa janela anárquica de propaganda, assente e baseada na mentira, no discurso do medo, na manipulação da verdade e da informação, cirurgicamente direcionada para os indecisos, os desiludidos e aqueles que não acreditam ou desconfiam da política e dos políticos (os abstencionistas). Podemos questionar se, em Portugal, existem mais de um milhão de racistas, xenófobos ou fascistas/salazaristas. Para a análise eleitoral, mesmo que seja relevante para o futuro do país, parece-me secundário. Há, sem dúvida, uma transferência de votos de alguns desiludidos com a anterior maioria da governação socialista para o Chega, mas não se pense que o seu número é tão significativo como querem fazer crer, por conveniência estratégica. Basta lembrar que o PS perdeu a maioria não segurando cerca de 500 mil votos (contra os mais de 800 mil votos a mais do Chega em relação a 2022) parte dos quais se perdeu também para o Livre e para a abstenção (cerca de 4 milhões de eleitores ficaram em casa). O aumento da extrema-direita também se prende com o resultado do PSD. É histórico que os indecisos e a alternância governativa sempre se confinou ao centro, entre o PSD e o PS. E a verdade, neste caso, é que o próprio PSD que não conseguiu acrescentar nada em relação a 2022, não conseguiu capturar esses votos flutuantes, deixando-os fugir para o Chega. Além disso, a diminuição da abstenção e os eleitores insatisfeitos que “saíram do sofá” resultou no denominado “voto de protesto” capturado.
E aqui é que se concentra o risco democrático e os danos políticos presentes e futuros. É perigoso continuar a assobiar para o ar e não enfrentar o problema. Isto é que tem permitido, em Portugal e na Europa, o crescimento da extrema-direita. O voto de protesto capturado pelo Chega é uma fração reduzida do seu eleitorado. As opções de voto foram cimentadas, conscientemente ou de forma ingénua, manipulada pela propaganda da mentira e da dissuasão, por uma razão ideológica: o regresso aos tempos do salazarismo, o racismo e a xenofobia, o retrocesso civilizacional dos direitos, o esdrúxulo conservadorismo religioso (evangélico e católico). É isto que representa o triplicar do eleitorado do Chega. E mesmo aqueles que entregaram o seu direito de cidadania ao Chega como forma de protesto, a única consequência é a legitimação destes inqualificáveis e condenáveis princípios. Por exemplo, os alentejanos e algarvios que votaram por protesto face à questão da seca, importa lembrar que não há, na área ambiental do programa eleitoral do Chega, uma única frase dedicada à seca e à escassez de água. Aos que reclamam postos de GNR ou mais policiamento nas duas regiões, não há uma única proposta ou medida que responda a essas preocupações. Resta o tradicional ataque à imigração.
Assim como os resultados dos dois círculos de emigração nada têm de protesto. Apenas um claro fator ideológico, muito assente no radicalismo populista bolsonarista.

E mais grave… é uma conjuntura ideológica que pretende negar a nossa história política destes dois últimos séculos e uma juventude tão escolarizada e tão qualificados, mas desconhecedora ou indiferente aos ataques à democracia e à liberdade. E isto deve preocupar, pelo menos, 80% dos eleitores portugueses.

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