Crise política: revisão da matéria dada
Publicado na edição de hoje, 19 de novembro, do Diário de Aveiro (página 14).
O momento em que um vazio e enigmático parágrafo de um comunicado do Gabinete de Imprensa da Procuradoria-Geral da República foi lançado para o espaço público, simultaneamente com um conjunto de buscas e constituição de arguidos (que não são, por si só, culpados) não é inócuo ou inocente.
Ou seja...
- António Costa escolhe o então ministro João Galamba (um dos ministros mais mal-amado deste Governo e espinha cravada na garganta do Presidente da República, desde que lhe deu posse totalmente contrariado e a contragosto) para encerrar o debate da discussão, na generalidade, da proposta de lei do Orçamento do Estado para 2024. Cai o Carmo e a Trindade;
- Surge, no espaço mediático e público, a suspeita de envolvimento do nome do Presidente da República numa alegada interferência para o tratamento de duas crianças gémeas, no SNS, que teve o custo de 4 milhões de euros;
- Com "Belém" debaixo de fogo, agravado pelas declarações de Marcelo Rebelo de Sousa em relação à guerra Israel-Hamas, rebenta a bomba judiciária.
Sem qualquer explicação cabal, recai uma suspeição sobre a principal figura do Governo que pressionou (e precipitou) a sua opção política. A crise instalou-se bem no seio da democracia: demissão do Primeiro-ministro, dissolução da Assembleia da República, eleições antecipadas a 10 de março de 2024.
O Governo não caiu por causa das suas medidas políticas e da sua governação. Aliás, elogiadas pelo Presidente da República na apreciação do documento do Orçamento do Estado. O Governo caiu porque houve, no entendimento do Ministério Público, um diz que disse que envolvia o nome de António Costa. Curiosamente, um semelhante diz que disse envolveu igualmente o nome do Presidente da República. Sobre este recai a dúvida e o (inquestionável) valor da presunção de inocência. Sobre o primeiro, recai a ira política da oposição, nomeadamente da direita que, entretanto, vai lançando os foguetes e apanhando as canas, como se este fosse um momento para celebrar o que quer que seja. Não é. O que aconteceu ao Governo (ao país e aos portugueses) ainda bem recentemente, há cerca de 4 meses, aconteceu a Rui Rio e ao PSD e a indignação política dos sociais-democratas foi bem diferente. É sempre mais fácil quando a pimenta está no ‘dito cujo’ dos outros… é bem mais fácil quando a avidez pelo poder leva ao populismo e ao baixo aproveitamento político.
Como é que fica o país, como é que ficam os portugueses, como é que fica a própria justiça (e já sabemos qual é a opinião dos portugueses sobre a justiça em Portugal) se tudo não passar de uma mera suspeição sobre António Costa? É isto um Estado de Direito?
À legitimidade e ao inquestionável papel de fiscalização e investigação do Ministério Público deve sobrepor-se o inabalável valor da democracia. À democracia não se pode sobrepor o absolutismo do poder, seja ele qual for. E à democracia todos devem explicações e todos devem poder ser escrutinados e julgados (mesmo os que julgam). Ninguém pode ter o direito de comandar a sociedade, de manipular a democracia, em função das suas regras ou bitola. Não pode haver, em momento algum, “justiça por próprias mãos”.
Há um princípio fundamental na justiça e num Estado de Direito que preserva a dignidade dos seus cidadãos: a presunção de inocência. Defendo (em tantos e tantos casos que existem no sistema judicial português, a qualquer nível) e defenderei sempre (nunca escrevi uma linha sobre processos judicias sem transitarem em julgado) este fundamental princípio como alicerce da democracia e da legítima defesa da liberdade e da inocência, acima de tudo, para combater os irremediáveis "linchamentos públicos" (por exemplo, tanto e tanto se atacou a personalidade do ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes, para nem haver julgamento, ou, ainda, o caso do ex-ministro Eduardo Cabrita que também não vai a julgamento, ou ainda, para não serem sempre os mesmo, o caso dos Vistos Gold com o social-democrata Miguel Macedo). Somos muito ágeis a apertar o gatilho para acusar, mas esquecemos bem depressa a irresponsabilidade dos julgamentos em praça pública e do que representam na vida dos visados (e, neste caso, do país).
Era possível que António Costa não se demitisse? Era. Para o país, para benefício dos portugueses tinha sido preferível que tal não tivesse ocorrido. Mas a pressão dos acontecimentos e do peso judiciário, levaram à decisão pessoal de António Costa.
Era possível que o Presidente da República não tivesse aceitado o pedido de demissão de António Costa? Não só era possível, como tinha sido desejável. A troco da recuperação da sua imagem e peso político, em queda livre acentuada (já eram vários os casos), Marcelo Rebelo de Sousa optou pela solução mais confortável para ele.
Mas ainda mais... O Presidente da República tinha alternativa à dissolução anunciada (e próxima) da Assembleia da República e à marcação de eleições antecipadas? Não só tinha como, a bem da elevação da democracia, teria sido, constitucionalmente, possível e desejável.
As eleições legislativas elegem os representantes dos cidadãos à Assembleia da República, não elegem o governo ou o Primeiro-ministro. Numa situação em que existiu, há menos de dois anos, uma manifesta e democrática opção dos eleitores portugueses em atribuir uma maioria governativa, era a desejável oportunidade (que deve estar presente no futuro, seja qual for o contexto) para o reforço da vontade dos cidadãos e da dignidade e elevação da democracia e das instituições (no caso, a Assembleia da República). Teria sido preferível, para bem do país e dos portugueses, que o Presidente da República tivesse permitido ao Partido Socialista indicar um novo Governo. Não aconteceu... infelizmente. Ao contrário do que outras democracias protagonizam, como é o exemplo mais recente em Inglaterra.
Pior é o país andar constantemente em eleições, com o desgaste da participação cívica dos eleitores e o afastamento dos mesmos em relação à política. Não nos queixemos, depois, com a taxa de abstenção (estejam mais ou menos corretos os cadernos eleitorais).
Em conclusão… é importante recuar aos pressupostos da atual crise política e à conjuntura que vivemos.
As dúvidas não podem deixar de ser equacionadas. Primeiro, o momento (político e presidencial) em que o Ministério Público decide avançar para as buscas e apreensões. Será assim tão inócuo?
Segundo, tomando como referência o que, publicamente, tem sido revelado do processo, como é que fica a dignidade ferida e colocada em causa do Primeiro-ministro demissionário... como fica a solidez da democracia e o papel da Assembleia da República... como fica a relação (já tão frágil) dos portugueses com a política... como fica a dignidade da função e do papel Presidencial... como fica a credibilidade (tão criticada) da Justiça, caso a investigação/inquérito a António Costa resulte numa mão cheia de nada?
E como ficará Portugal?