Crise Política: um enorme "buraco negro" nas instituições e na democracia
há pouca coisa pior que um... a montanha pariu um rato.
(crédito da foto: Eraldo Peres, in SIC Notícias)
Por definição muito básica e simples, no “buraco negro” o campo gravitacional é tão intenso que nada lhe pode escapar. Assim parece ser o atual momento da conjuntura política nacional. Um enorme buraco escuro, profundo, onde nada escapa: nem a democracia, nem a política, nem as instituições do Estado e, muito menos, a justiça.
Consequências? Muito graves para o país e para os portugueses.
Importa marcar/numerar os factos, para facilitar a reflexão.
1. A demissão
Sobre a opção pessoal, legítima e consistentemente explicada por António Costa, já aqui foi feita a devida reflexão.
Se António Costa se devia ter demitido? Para o país, para benefício dos portugueses tinha sido preferível que tal não tivesse ocorrido. Mas a pressão dos acontecimentos e do peso judiciário, levaram à decisão pessoal de António Costa.
Acontecimentos e criticável judicialização da democracia que parecem começar a ruir e a revelarem-se surreais, tendo em conta as mais recentes revelações vindas a público: "Erro do Ministério Público: transcrição de escuta troca Costa com ministro da Economia" (CNN Portugal).
Faz, por isso, todo o sentido as vozes (mesmo fora do ciclo socialista) que, publicamente, manifestaram enorme preocupação com a judicialização da política... assim como parece cada vez mais cabal e consistente, bem como perfeitamente lógica e legítima, a comunicação que o (ainda) Primeiro-ministro, na sua plenitude de funções, fez aos portugueses para explicar a sua visão sobre os acontecimentos.
É, assim, legítimo questionar: face ao erro assumido pelo Ministério Público, erro que sustentou a opção de demissão por António Costa, o que se segue? Como é que fica tudo isto?
2. Ainda sobre a judicilização da política
Há um princípio fundamental na justiça e num Estado de Direito que preserva a dignidade dos seus cidadãos: a presunção de inocência. Defendo (em tantos e tantos casos que existem no sistema judicial português, a qualquer nível) e defenderei sempre (nunca aqui houve qualquer texto sobre processos judicias sem transitarem em julgado) este fundamental princípio como alicerce da democracia e da legítima defesa da liberdade e da inocência, acima de tudo, para combater os irremediáveis "linchamentos públicos" (por exemplo, tanto e tanto se atacou a personalidade do ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes, para nem haver julgamento, ou, ainda, o caso do ex-ministro Eduardo Cabrita que não vai a julgamento). Somos muito ágeis a apertar o gatilho para acusar, mas esquecemos bem depressa a irresponsabilidade dos julgamentos em praça pública e do que representam na vida dos visados (e, neste caso, do país).
Mas mais... os que rasgam as vestes com os casos e casinhos no Governo e, neste momento, com este processo do Data Center, são os mesmos (PSD, IL e mais à direita ainda) que, ainda recentemente, iam criando um motim nacional com a investigação ao PSD e a Rui Rio. Não ter qualquer vergonha política é isto... nem a populismo baixo cheira. É mau de mais. Só a abominável ambição e ânsia pelo poder justifica tal triste realidade. Já para não falar do histórico de situações judiciais que tiveram impacto partidário, por exemplo, no PSD (viagem turística da Nestlé, BPN, caso banco Relvas, vistos gold, casos que envolveram deputados nesta legislatura, etc.).
Mas mesmo à esquerda do PS, embora de forma mais suave, com a obsessão ideológica doentia de que tudo o que envolve investimento privado é o "diabo da corrupção", esquecem-se (ou querem fazer esquecer) o caso Robles, por exemplo, em 2018, ou os mais recentes ajustes diretos (esse papão imoral da contratação pública) para assessoria a vereação sem pelouro numa autarquia da região de Setúbal.
3. Alterar o paradigma da democracia
Era possível que António Costa não se demitisse? Era, já acima referido.
Era possível que o Presidente da República não tivesse aceitado o pedido de demissão de António Costa? Não só era possível, como tinha sido desejável. A troco da recuperação da sua imagem e peso político, em queda livre acentuada (já eram muitos os casos, por exemplo, os dois mais recentes: declaração sobre a Palestina ou o tratamento médico especial a duas crianças gémeas), Marcelo Rebelo de Sousa optou pela solução mais confortável para ele.
Mas ainda mais... O Presidente da República tinha alternativa à dissolução anunciada (e próxima) da Assembleia da República e à marcação de eleições antecipadas? Não só tinha como, a bem da elevação da democracia, teria sido, constitucionalmente, possível e desejável.
As eleições legislativas elegem os representantes dos cidadãos à Assembleia da República, não elegem o governo ou o Primeiro-ministro. Numa situação em que existiu, há menos de dois anos, uma manifesta e democrática opção dos eleitores portugueses em atribuir uma maioria governativa, era a desejável oportunidade (que deve estar presente no futuro, seja qual for o contexto) para o reforço da vontade dos cidadãos e da dignidade e elevação da democracia e das instituições (no caso, a Assembleia da República). Teria sido preferível, para bem do país e dos portugueses, face à conjuntura e ao momento em que os factos acontecem que o Presidente da República tivesse permitido que o Partido Socialista indicasse um novo Governo. Não aconteceu... infelizmente. Ao contrário do que democracias em vários países protagonizam, como é o exemplo mais recente em Inglaterra.
A solução encontrada em nada beneficia a democracia, nem o país. Ainda por cima com a contradição do prolongar da agonia do contexto com a desculpa do Orçamento do Estado que, nesta opção, não colhe porque não há qualquer constrangimento, nem é o fim do mundo que Portugal "viva" três ou quatro meses em duodécimos.
Pior é o país andar constantemente em eleições (só este ano, 2024, serão duas), com o desgaste da participação cívica dos eleitores e o afastamento dos mesmos em relação à política. Não nos queixemos, depois, com a taxa de abstenção (estejam mais ou menos corretos os cadernos eleitorais).
4. As consequências
Em cima da aprovação do Orçamento do Estado, o país vai mergulhar, durante cerca de meio ano, numa governação de indefinição (caso a solução governativa não passe pelo PS) para assistirmos, depois a uma mudança de políticas e medidas orçamentais e de opções governativas com um Orçamento retificativo.
Mas também do ponto de vista político...
Ao contrário do que a oposição afirma (à falta de melhor argumentação e de alternativas) o Governo não caiu por dentro e nem sequer é tão claro ou linear (a não ser na retórica negacionista e populista) que a maioria dos portugueses (apesar das dificuldades que existem e que ninguém as nega) esteja cansada com o governo.
Em oito anos de governação, com duas guerras, com a inflação e a gravidade da economia global, com dois anos de pandemia que "afetou" todo o mundo, é difícil ficar indiferente ao aumento de 50% do salário mínimo nacional; ao recuo da taxa de desemprego de 12,9% (em 2015) para 6,1%; ao aumento médio das pensões em 23%; o segundo país da União Europeia com o maior crescimento; aos apoios sociais e económicos sem precedentes para apoio às famílias, empresas e jovens, no combate à pandemia e à inflação; aos manuais escolares gratuitos e creches gratuitas; à redução do IRS jovem e apoio às propinas; à reforma do emprego com a agenda do Trabalho Digno; à redução da Dívida de Pública e a uma maior sustentabilidade financeira; às medidas de combate à crise na habitação; ao primeiro excedente orçamental, fruto das contas certas; ao facto de Portugal ter sido, entre 2022 e 2023, o 3.º país da União Europeia (atrás do Luxemburgo e da Bélgica) com maior aumento médio real dos salários; à previsão de redução da dívida pública situando-a abaixo dos 98% do PIB... entre outras.
Por outro lado, a incerteza quanto às perspetivas do resultado eleitoral, da composição da Assembleia da República e da formação do novo Governo, são preocupantes.
A maioria dos portugueses ainda tem bem na memória o espaço temporal de 2011 a 2015 quando se cortaram, de forma acentuada (e mais do que o necessário ou previsto) pensões, salários, férias e feriados; quando emigraram 500 mil portugueses; quando o desemprego subiu em flecha; quando a do PIB foi superior a 6%; quando se afirmou que havia professores a mais (redução de mais de 21% do número de professores) e se fecharam mais de 2.500 escolas do ensino básico ou se aumentou do número de alunos por turma; quando a carga fiscal aumentou, por opção política (e afirmado publicamente), de forma colossal; quando foram destruídos mais de 600 mil empregos; quando aumentaram as falências do tecido empresarial; quando se assistiu à degradação da Função Pública e ao desrespeito pelos funcionários públicos e pela classe média; quando se pediu aos futuros reformados que começassem a poupar para a reforma ou que professores, médicos e jovens procurassem melhores oportunidades no estrangeiro; ... .
Mas mais ainda... num ano em que se celebrarão os 50 anos do 25 de Abril de 74 e possibilidade da degradação da democracia não é um contexto irrelevante.
Luís Montenegro, a propósito das eleições regionais na Madeira, afirmava (repetidamente, diga-se em abono da verdade): “Eu nunca farei um acordo de governação com o Chega. Não é não".
Só que é importante também lembrar Paulo Rangel (TSF, dezembro de 2019) - “Até agora ainda não vi nenhum fascismo em André Ventura”; ou Miguel Pinto Luz (Expresso, janeiro 2020) - “Sim, a aliança com o Chega é possível”; ou, mais recentemente, Passos Coelho (numa escola secundária, em outubro de 2023) - “Não creio que o Chega seja um partido anti-democrático”.
5. Em conclusão
É importante recuar aos pressupostos da atual crise política e à conjuntura que vivemos.
As dúvidas não podes deixar de ser equacionadas. Primeiro, o momento (político e presidencial) em que o Ministério Público decide avançar para as buscas e apreensões. Será assim tão inócuo?
Segundo, tomando como referência o que, publicamente, é revelado, como é que fica a dignidade ferida e colocada em causa do Primeiro-ministro demissionário... como fica a solidez da democracia e o papel da Assembleia da República... como fica a relação (já tão frágil) dos portugueses com a política... como fica a dignidade da função e do papel Presidencial... como fica a credibilidade (tão criticada) da Justiça, caso a investigação/inquérito a António Costa resulte numa mão cheia de nada?
E como ficará Portugal?