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Debaixo dos Arcos

Espaço de encontro, tertúlia espontânea, diz-que-disse, fofoquice, críticas e louvores... zona nobre de Aveiro, marcada pela história e pelo tempo, onde as pessoas se encontravam e conversavam sobre tudo e nada.

Da dignidade da pessoa... mesmo na criminalidade.

Ricardo Salgado (Pedro Catarino, in Negocios).jpg
(crédito da foto: Pedro Catarino, in Jornal de Negócios)

Muito raramente, e esta não será exceção, faço qualquer tipo de considerações sobre processos judiciais em curso (seja qual for o marco temporal do processo), mas é óbvio que o caso do BES, para além de todo o impacto, primeiro, e mais importante, na vida de mais de 2.000 pessoas/famílias (os lesados) e depois, também, no nosso sistema financeiro, tem contornos e um enredo merecedor de um qualquer argumento cinematográfico hollywoodesco.

Os factos conhecidos, os dados revelados, todo o percurso e história deste processo judicial (de 10 anos, pelo menos) e tudo o que levou à queda de um dos maiores bancos e de uma das famílias mais poderosas do país, antes e depois do 25 de Abril (desde 1869), não são pormenores ou meras casualidades de branqueamento de capitais, fugas fiscais, corrupção, rede e tráfico de influências, entre outros. Podemos até, mesmo com alguma dose de exagero, dizer que o Caso BES é muito mais que um mega-processo, tal a sua dimensão, os impactos que teve nas pessoas, no sistema bancário e financeiro, nas contas públicas e na economia nacional.

Podemos até juntar processos judiciais complexos como a Operação Marquês, a Face Oculta, o processo Casa Pia (há 22 anos), a operação Furacão, até mesmo o caso BPN/SLN, ou alguns mais “simples” como o caso Beleza (sangue contaminado), o caso dos Submarinos ou o caso da Universidade Moderna, e, provavelmente, tudo somado não supera a mega dimensão, não só processual, como a das suas consequências, do caso BES.
Daí a necessidade natural (e de direito) de serem apuradas e imputadas as devidas responsabilidades criminais. Sobre isso não haverá muitas dúvidas.

O que já não é aceitável… ou melhor, é condenável a exploração estratégica (defesa) e mediática (comunicação social) da imagem e do estado de sofrimento de Ricardo Salgado. São legítimos os sentimentos de revolta e repúdio pelos factos e pelos seus impactos.

Não é legítimo e, portanto, inaceitável o “teatro” e o “circo” montados às portas do Campus da Justiça, em Lisboa, no arranque do julgamento do caso BES (volvidos dez anos), envolvendo o estado de saúde e o estado mental, em notório declínio, de um cidadão, de uma pessoa com direito à sua privacidade e dignidade. Até mesmo, em memória dos 104 lesados que, ao longo desta década de arrastamento judicial, já faleceram e aos perto de 2.000 cidadãos que viram as suas vidas “assaltadas” e, em muitos casos, desfeitas.
Mesmo assim, porque, para além da justiça, o que se espera e reivindica é uma solução justa para estes lesados, não será a personificação da culpabilidade e da responsabilidade criminal que possa advir que reporá os danos causados.

É deplorável a estratégica da defesa na exploração da saúde mental de Ricardo Salgado, como se fosse essa a responsabilidade processual que está em causa ou se tal tivesse alguma relação casual com os alegados crimes cometidos e o que aconteceu até à queda do BES. Porque se foi possível a saída pela porta da garagem do Campus da Justiça, porque é que não foi assegurada a sua entrada pelo mesmo local? Não sei o que afetará, ou não, a avaliação do coletivo de juízes, presidido pela magistrada Helena Susano (que terá a companhia de Bárbara Churro e de Bruno Ferreira, mas, garantidamente, isso não fará com que os lesados se sintam menos lesados pelas consequências criminais dos atos ou mais empáticos ou condescendentes com Ricardo Salgado. Antes pelo contrário.

Mais ainda… do ponto de vista mediático e jornalístico é difícil aceitar o valor informativo ou noticioso desta realidade para o processo em causa, captar e transmitir a imagem de definhamento físico e mental do arguido.
Aliás, não é só questionável como, à luz da própria deontologia profissional, é criticável e condenável.

Código Deontológico do Jornalista (última aprovação em janeiro de 2017 e referendado a 25, 26 e 27 de outubro de 2017).

  1. O jornalista deve salvaguardar (…). O jornalista deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor.
  2. O jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos exceto quando estiver em causa o interesse público (…). (E não o interesse DO público. Coisa bem diferente). O jornalista obriga-se, antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade, dignidade e responsabilidade das pessoas envolvidas.

Infelizmente, por mais queixas (e quase sempre legítimas) que o jornalismo tenha em relação ao presente e futuro da realidade do setor, não deixa de ser verdade que…
sempre que há “circo e palhaço”, há sempre uma televisão, um jornal ou uma rádio para ”bater palmas”. Infelizmente...
Foi o caso.