Da saúde politiqueira

Há contextos e situações para as quais não tenho, por norma, o hábito de comentar: a desgraça alheia, o mal dos outros... doença/saúde incluída. A menos que haja algum “contexto” óbvio. Não vou, por isso, alimentar “teorias da conspiração” sobre alegada teatralidade eleitoralista do caso de saúde de André Ventura, durante um jantar/comício em Faro. Embora possa reconhecer a responsabilidade do próprio partido e seus líderes, já que essas reações não são mais que o reflexo da “identidade partidária”: mentira, desinformação, populismo, radicalismo e o mimetismo de outras lideranças ideologicamente próximas (Bolsonaro e Trump, à cabeça).
Coisa diferente é falar sobre todo o contexto político que envolveu o espasmo esofágico que André Ventura sofreu. E volto a repetir… sofreu.
Se não coloco (ou deixo de colocar) em causa a veracidade do acontecimento (repetido três dias depois), já todo o aproveitamento político, claro, óbvio e criticável merece a total reprovação, seja pela continuada propaganda populista, racista e mentirosa pela voz de responsáveis máximos do partido, seja pelo aproveitamento mediático da imagem do próprio André Ventura e a repetida incoerência e falta de honestidade política.
Esta mistura explosiva, entre crença (ou, neste caso, beatices bizarras e ridículas) e política, diz muito mais da falta de valor (e de valores) político, do que propriamente do legítimo direito à crença, que não deixa de ser uma manifestação pessoal, individual e, no caso da fé em causa, com o recato que a mesma determina.
Por todas as explicações médicas já proferidas publicamente, o espasmo esofágico, que atinge entre 12% a 54% dos residentes em países ocidentais, merece especial cuidado médico, ida a um centro hospitalar (na maioria dos casos, pelos próprios meios) e não coloca em perigo de vida a pessoa. Daí que referências a 13 de maio e a Nossa Senhora de Fátima (pelo insuspeito do costume, o “cilício” Pedro Frazão) ou a fotografia de André Ventura, no quarto hospitalar, com as mãos juntas e o terço pendurado, são, para além de deprimentes, para além mero populismo e falsidade política, uma ofensa aos católicos e à própria Igreja.
Mas mais deplorável e degradante foi o aproveitamento político do momento para mediatizar a mentira, a xenofobia e o racismo, coisas, aliás, que a própria Igreja Católica combate e condena (pelo menos, em teoria).
Começou logo pela propositada não referência ao facto do médico que assistiu André Ventura ser estrangeiro (por sinal, europeu) para evitar a alavancagem de reações negativas e a chuva de prováveis críticas em relação à temática da migração, tão maltratada pelo partido.
Como se isso não bastasse, o líder da bancada parlamentar (e, neste caso, tão bem assente “para lamentar”) teceu um rosário de mentiras e de ataques propositados à comunidade cigana em Portugal (portuguesas), que, aliás, prestaram um maior contributo de cidadania e de democracia com o apelo público ao voto (ver vídeo dos jovens da Associação Rizoma), algo que deveria envergonhar o partido, os seus líderes e os seus seguidores: nunca houve nenhuma invasão ou tentativa de invasão ao Hospital de Faro, André Ventura não teve qualquer segurança privado à porta do quarto, a disponibilização de um quarto individual, não sendo normativa, integra um conjunto de normas previstas para determinados contextos de internamento. Tudo desmentido pela Administração do Hospital de Faro e pela própria PSP, tantas vezes elogiada pelo partido, e que tem acompanhado e monitorizado a campanha eleitoral do Chega.
Para terminar todo este aproveitamento político e populista do contexto, é lamentável que não tenha havido, por parte de André Ventura, um único peso ou rebate de consciência sobre o que disse em relação aos serviços e funcionamento do Hospital de Faro, horas antes de ter dado entrada nas urgências; as acusações e críticas demagógicas que proferiu em relação à ida de Montenegro (ainda com a condição e função de Primeiro-ministro… o que faz toda a diferença), há alguns meses, às urgências e ter contornado o protocolo comum (como se a terceira figura do Estado não tivesse, por todas as razões óbvias, protocolos diferenciados); ou um elogio às políticas que têm sido implementadas, com todos os contratempos e falhas, e que têm mantido o SNS vivo desde 1979.
Mas o que é mais bizarro e indecifrável é que perante o óbvio, perante os factos, perante a realidade construída e desmascarada, ainda há 1,2 milhões de portugueses a acreditar na mentira, a confiar em quem se diz antissistema e se alimenta do sistema, quem diz lutar contra a corrupção e está totalmente minado por casos judiciais (graves), quem emerge (ou remanesce) pela mão da democracia e a pretende implodir (num perigoso retrocesso político, social e civilizacional), quem rasga vestes pela superioridade moral (e se fotografa em túmulos históricos ou genufletido piamente em igrejas) e não cumpre, minimamente, qualquer preceito dogmático da sua fé.
Não é por falta de aviso…