Evocar nomes em vão, não! Pela nossa rica saúdinha...
Reza o segundo dos 10 Mandamentos que não se deve invocar o nome de Deus em vão.
A propósito de se assinalar, hoje, o 40.º aniversário da criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), António Costa evocou a memória de Mário Soares e de António Arnaut para os qualificar de "pai e mãe" do SNS.
Importa, primeiro, dar nota que, aquando da criação do SNS (1979), António Arnaut era Ministro de Estado dos Assuntos Sociais, no II Governo Constitucional liderado por Mário Soares em coligação, curiosamente, com o CDS (Freitas do Amaral) e que durou, apenas, cerca de 8 meses.
É inegável e inquestionável o papel do então ministro António Arnaut e a opção política e social protagonizada pelo governo de Mário Soares na implementação de um sistema que abriu as portas dos cuidados de saúde, do direito à protecção da saúde, a todos os cidadãos (portugueses ou estrangeiros), independentemente da sua condição económica e social. Este é um dos símbolos da Revolução do 25 de abril de 74 e da Democracia do 25 de novembro de 75, permitindo criar condições para um país mais desenvolvido, mais produtivo (por haver cidadãos mais saudáveis e mais activos) e economicamente mais estável.
É indiscutível que o SNS trouxe um desenvolvimento tecnológico e um maior conhecimento técnico e profissional na área da saúde, possibilitou melhores cuidados, criou uma rede de prestação médica (hospitais, centros de saúde, etc.), baixou a taxa de mortalidade infantil e contribuiu para o aumento, em 10 anos, da esperança média de vida, entre outros.
Mas também é claro que a Saúde trouxe uma bipolarização no seu conceito, na sua estruturação, nos seus princípios, nomeadamente do ponto de vista ideológico e político.
E é na vertente ideológica que o SNS enfrenta o seu maior desafio, a par com os conhecidos e sinalizados problemas de sustentabilidade, na resposta a uma população envelhecida e no aumento e alteração da tipologia das patologias actuais (cardiovasculares, respiratórias e oncológicas, por exemplo).
Para o Presidente da República, numa declaração pública, emitida hoje, sobre o SNS, "o que une os portugueses é muito mais do que aquilo que os separa". No entanto, a realidade contraria Marcelo Rebelo de Sousa. Há duas questões que são comuns aos portugueses: os cidadãos são o princípio e o fim do SNS e as críticas ao actual estado da saúde em Portugal. Mas a diferença ideológica em relação ao SNS cria muito mais clivagens que uniões. A interpretação da responsabilidade do Estado (governo) na "definição e coordenação global da política de saúde" (número 1, do artigo 3.º) divide direita, esquerda e centro.
E nesta matéria, o que a realidade actual demonstra é que a Esquerda, a tal que se afirma como titular exclusiva da defesa do SNS, foi a que, nos últimos 4 anos mais atacou e colocou em causa a sobrevivência e o futuro do SNS, facto que culminou com a aprovação da surreal e irrealista Lei de Bases da Saúde, naquela que é a maior contradição entre a realidade e a ideologia.
Os factos são evidentes.
Quer a Organização Mundial de Saúde (OMS), quer o Conselho Nacional de Saúde, referem que Portugal é dos quatro países da União Europeia com menos investimento na saúde (despesa de 9% do PIB, sendo que só 4,6% são investimento... 40% da despesa na saúde cabe aos portugueses).
É o próprio Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, Francisco Ramos, responsável pela área financeira do SNS, que contraria as declarações de Mário Centeno a propósito do Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) e questiona a sustentabilidade da Saúde em Portugal. Para essa sustentabilidade é preciso o dobro dos 300 milhões previstos, sugerindo um aumento da carga fiscal (diminuindo os benefícios fiscais na saúde, em sede de IRS, de 15% para 5%).
Além disso, o espírito que sustentou a criação do SNS, o princípio da equidade social e da universalidade está longe de ser cumprido, não garantindo (tal como na justiça e na educação) um acesso igual a todos os cidadãos. Por exemplo, actualmente há cerca de 600 mil cidadãos, em Portugal, sem médico de família.
Por outro lado, o SNS é um poço de contradições políticas e ideológicas espelhadas no caos que foi a gestão da pasta da saúde durante estes quatro anos.
Importa recordar a tensão entre médicos e enfermeiros e o Governo, durante a legislatura que agora termina. Podendo acrescentar-se o número de médicos e enfermeiros que preferem (ou são obrigados) a deixar o país (entre janeiro e junho deste ano, foram entregues 386 pedidos de certificados de médicos que querem exercer no estrangeiro, o triplo face ao mesmo período do ano passado que foi de 130).
Por mais que Mário Centeno queira provar o contrário, as inúmeras demissões das direcções clínicas e administrações hospitalares, o desinvestimento, as permanentes carências dos serviços são o espelho, mais que óbvio, das chamadas cativações que assolaram o SNS.
Mas a principal questão do SNS centra-se no preconceito ideológico da esquerda, nomeadamente extremismo do BE e do PCP: as questão do sector privado e das Parcerias Público Privadas.
A maior contradição entre a utopia e a realidade, o irrealismo da obsessão partidária, esteve bem patente nesta legislatura.
Face à realidade do SNS e aos desafios que lhe são colocados, nos dias de hoje, face ao reconhecimento da falta de investimento público no sector e da insustentabilidade financeira da Saúde, a presença dos privados no SNS é inevitável. E foi-o durante estes 4 anos, com a conivência do Ministério e de Marta Temido, do PCP e BE.
A título de exemplo.
A ministra Marta Temido admite contratar serviços a privados para fazer face à falta de médicos, aumentando as parcerias e criando uma maior precariedade laboral.
Por outro lado... o facto: o número de cirurgias, no SNS, atingiu, em 2018, o valor mais alto de sempre, com quase 595 mil doentes operados. Crescimento que se deveu ao recurso ao sector privado e sector social.
É este o outro lado da moeda que faz cair por terra a utopia do BE e PCP: Em 2018 registou-se um aumento de 25,8% de doentes operados em hospitais convencionados e um aumento de 15,5% de doentes operados em unidades do sector privado e social com protocolo com o SNS. Já os hospitais públicos registaram uma redução, fizeram menos 4.787 operações do que em 2017.
As voltas que a ideologia dá, nos 40 anos do SNS.