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Debaixo dos Arcos

Espaço de encontro, tertúlia espontânea, diz-que-disse, fofoquice, críticas e louvores... zona nobre de Aveiro, marcada pela história e pelo tempo, onde as pessoas se encontravam e conversavam sobre tudo e nada.

Família tradicional só há uma: são todas elas.

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Publicado na edição de hoje, 15 de abril, do Diário de Aveiro (página 6)

O lançamento do livro “Identidade e Família” teria passado despercebido não fossem as intervenções públicas de alguns dos seus autores, nomeadamente Paulo Otero, e a apresentação pública assumida pelo antigo Primeiro-ministro Passos Coelho (ver a reflexão de ontem no blogue Debaixo dos Arcos).
Da sinopse do livro extrai-se: «A família é o habitat natural de convivência solidária e desinteressada entre diferentes gerações, o veículo mais estável de transmissão e aprofundamento de princípios éticos, sociais, espirituais, cívicos e educacionais, (…), a mais eficaz instituição de garantia de coesão do tecido social». Ora, esperava-se, por isso, que o livro fosse uma reflexão sobre a realidade da família, os seus desafios, as respostas necessárias às pressões que sofre (sustentabilidade, benefícios sociais e fiscais, habitação, consolidação laboral e profissional, apoios à maternidade e paternidade, acesso ao pré-escolar, ...).

Desenganemo-nos… o livro não defende a família: ataca a família, todas, até as que, presumivelmente, os autores querem defender. E vai mais longe. A pretexto dessa bafienta defesa, o que pretende atacar, essencialmente, é a descriminalização da Interrupção Voluntária da Gravidez, o papel e os direitos da mulher, a igualdade de género e, até mesmo, a própria democracia.
Através de uma visão ideológica e ultrarreligiosa alicerçada na agenda do Movimento Ação Ética (o padre Portocarrero de Almada, do Opus Dei, e Paulo Otero são claros quanto ao valor da democracia ou à urgência de “enterrar o 25 de Abril”, ou a desvalorização da mulher, por César das Neves, …) o que o livro pretende, manifestamente, é impor na sociedade a normalização de um conjunto de valores éticos e morais que os mesmos entendem, de forma totalitária, como superiores e únicos. Sem qualquer respeito pelo outro.

E aqui é que reside a polémica. Uma sociedade democrática, sólida e consistente, que promove e protege os fundamentais direitos, garantias e liberdades é, precisamente, aquela que permite e garante condições e oportunidades para que todos, independentemente de credos, condição, cultura, género ou raça, possam assumir as suas vidas em função das suas opções e convicções individuais. Seja em relação à família – que são todas naturais – às suas opções de vida, às suas manifestações agnósticas ou crentes, à igualdade nos deveres e direitos que, homem e mulher, têm na família e/ou na sociedade, sem qualquer tipo de subjugação.

Não me venham com o papel da mulher “dona de casa”, só porque invejam as que vos são melhores, em tudo: na família, na profissão, na sociedade. Nada contribuiu melhor para a minha consciência social e ética do que ter tido uma mãe que trabalhou, que educou, que foi pilar familiar, na mesma condição que a do meu pai.

E não me venham com a família tradicional e moral. Se essa é a vossa opção, mesmo que criticável, vivam-na. Não a imponham. Não são mais católicos (nem tão pouco mais ou menos) do que um filho ver o pai ajoelhado junto à cama da mulher (a referência familiar) nos seus últimos momentos, aguardando o final de uma vida a dois, mais que preenchida, onde o papel de cada um sempre se confundiu, se igualou, se completou, foi vivido dentro e fora de casa, sem impor nada do que fosse aos dois filhos, às três netas, aos amigos, aos vizinhos. Sim… uma família tão natural ou tradicional como outra qualquer (católica, casada ou em união, agnóstica, monoparental, do mesmo sexo, com ou sem filhos, …). Não me venham dar lições de família… nunca lá chegarão.

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(Diário de Aveiro, 15 de abril de 2024, página 6)