Fomentar o ódio. Ponto final parágrafo.
Na quinta-feira, na reunião do Executivo Municipal de Loures, o presidente da autarquia, Ricardo Leão, subescrevia uma recomendação apresentada pelo eleito do partido Chega, Bruno Nunes (também deputado parlamentar) que propõe uma alteração do regulamento municipal de habitação, permitindo despejar de casas municipais quem comete crimes, nomeadamente os praticados durante os focos de violência que surgiram ultimamente, em vários bairros, após a morte de Odair Moniz.
A proposta, aprovada por maioria (7 votos a favor do PS, PSD e Chega, e 4 contra da CDU) seria, por si só, mais que suficiente para uma condenação e repúdio óbvios dada a sua ineficácia jurídica e constitucional: imputar uma responsabilidade criminal por destruição de um bem público sem qualquer relação direta com a habitação enquanto bem municipal. Há um vasto conjunto de preceitos jurídicos que permite a responsabilização direta por degradação e destruição da coisa pública, assim como da própria violação da ordem pública e do bem-estar. Por outro lado, mesmo que fosse uma atribuição jurídica municipal, seria inconcebível que todo um agregado familiar fosse colocado debaixo da Ponte sobre o Rio Trincão, no tão famigerado Parque Tejo, por exemplo, por um ato ilícito praticado da responsabilidade de um dos seus elementos. Isto, para não ter que adjetivar a barbaridade da observação feita pela jornalista do Expresso, Ângela Silva, que afirmou (sem se rir) a propósito do contexto, que “os familiares de um criminoso são igualmente responsáveis”. A sério?! Ou estaria a referir-se a Marcelo Rebelo de Sousa e ao seu filho? Quem sabe…
A habitação, que tanto esforço de mudança de perceção e de enviesamento ideológico requereu nos últimos anos, é um direito fundamental (o primeiro direito, face à crise habitacional) e não um privilégio ou uma circunstância. Por isso, mais do que a inconstitucionalidade e o extravasamento jurídico da proposta, há a falta de ética política e a imoralidade social da aprovação e dos seus pressupostos: "É óbvio que eu não quero que um criminoso que tenha participado nestes acontecimentos, se for ele o titular do contrato de arrendamento é para acabar e é para despejar, ponto final parágrafo", como afirmou o autarca (e, já agora, infelizmente, presidente da Federação da Área Urbana de Lisboa do PS).
Mas após a polémica mediática instalada, como diz, e bem, a sabedoria popular, a emenda foi pior que o soneto. Numa clara tentativa de lavagem da imagem política, o presidente da Câmara Municipal de Loures não recuou no sentido de reverter a posição pública assumida, limitando-se apenas a ressalvar o mais que óbvio, a falta de competência do Poder Local para o cumprimento de atribuições judiciais: “As declarações tornadas públicas, pela minha intervenção, na reunião da Câmara Municipal de Loures, eram referentes, única e exclusivamente, a casos transitados em julgado. Nunca o município se deve sobrepor ou substituir ao poder judicial. Nem nunca o fará”. Isto qualquer dos comuns dos mortais percebe que nunca seria possível. Mas o que está em causa, continua em causa: a relação direta entre o direito à habitação (do próprio e do seu agregado) e um eventual crime de ordem pública sobre uma outra qualquer coisa pública que não o alojamento municipal. E é aqui que continua a residir a falta de ética política e a imoralidade social.
É lamentável que um autarca, com responsabilidades acrescidas de defesa dos interesses e das necessidades mais básicas dos seus munícipes (TODOS), embarque em narrativas de exclusão, de populismo, de racismo ou xenofobia, subscrevendo propostas vindas daqueles para quem a vida humana apenas tem valor se for a da sua “superioridade racial” ou a do seu “nacionalismo bacoco”.
E pior que tudo isto (como se tudo isto já não fosse suficientemente mau) é que a posição assumida por Ricardo Leão, acompanhado pelos seu Executivo, nem sequer disfarça o politicamente óbvio: a sobreposição de uma clara estratégica de sobrevivência política, a menos de um ano das próximas eleições autárquicas, sobre os mais elementares valores da dignidade humana e dos direitos de qualquer cidadão. Isto, infelizmente, é de uma imoralidade social inqualificável para um detentor de um cargo político público.
Já não bastava termos um autarca que acha que a solução para as suas debilidades ou incompetências é tornar a cidade um faroeste pistoleiro português. Ou os que acham que se devem sobrepor ao processual do direito jurídico só porque é uma chatice a demora e o direito dos cidadãos aos recursos, mas quando lhes dá jeito o arrastamento temporal dos processos é uma lufada de ar fresco. Ou ainda, como ao caso, os que se acham no direito de reescrever a Constituição ou reinventar o Estado de Direito subscrevendo uma proposta, política e socialmente ignóbil e desprezível, da extrema-direita em que confunde violência com o legítimo direito constitucional à habitação.
É lamentável que o autarca, por sinal do PS, não se tenha insurgido publicamente, com toda a legitimidade enquanto eleito e responsável pelo Poder Local e pelo seu Município, contra a intenção do atual Governo em revogar uma das políticas públicas de intervenção social, de cidadania e de participação comunitária mais bem estruturas: o programa dos Bairros Saudáveis.
Porque são (também) da responsabilidade municipal as respostas sociais, a promoção da igualdade e da cidadania, as competências sociais como as relacionadas com a habitação e os bairros.
Infelizmente, enraizado num inaceitável complexo de superioridade moral e social, a forma preconceituosa como a sociedade e o poder (local e nacional) olham para o território (como uma mera ocupação do espaço, sem considerar que este não existe sem pessoas e sem as subjacentes dinâmicas socais) faz como que os “bairros sociais”, não planeados e desestruturados, transformem as complexas realidades sociais em problemas de maior dimensão, avolumados num espaço fechado e pressionado, sem respostas mínimas (escola, saúde, transportes, atratividade), como se esta fosse a “última coca-cola no deserto” da solução para as necessidades de alojamento dos “indesejados” (ciganos, africanos, sem-abrigo, baixa estratificação social, etc.). Sem se perceber que são pessoas, iguais nos seus direitos e liberdades, e não objetos que escondemos no sótão ou na cave porque não precisamos, não prestam ou não gostamos.
Sem se pensar que cidades queremos ou estamos a construir, sem políticas de inclusão ou socialização, sem projetos comunitários (glória e louvor a projetos de cidadania como, por exemplo, os “Percursos Acompanhados” da CooperActiva e do CESIS), sem plena justiça social continuaremos, desde há 2,5 milhões de anos, a construir guetos em vez de erguermos territórios onde a liberdade e a dignidade da pessoa, e as respetivas dinâmicas socioeconómicas, são o seu capital mais precioso.
Alimentar o ódio e a exclusão nunca foi, e nunca será, solução, a começar pela responsabilização (ou a falta dela) do poder político que legitima a narrativa racial, xenófoba e pseudonacionalista.