Na ética jornalística, "interesse público" não é igual a "interesse do público". Nem nunca deverá ser.
Não tenho a certeza que o país necessite de uma reforma da Justiça, isto sem invalidar questões técnicas e do direito que não entram nesta equação. Mas uma coisa é certa, o que a Justiça menos precisava, neste momento era que o poder político (Presidente e Assembleia da República e Governo) e a sociedade estivessem mais entretidos com pacotes anticorrupção, sustentados na demagogia e populismo partidário para satisfação de eleitorado e de posicionamentos na extrema-direita. Para além de um projeto vazio, sem o mínimo impacto, com anúncios de medidas já decididas no anterior governo ou que já existem há 30 anos, em Portugal. Bem como ser considerável e minimamente sustentada a legislação existente neste âmbito (aplique-se com rigor, transparência e de forma eficiente e eficaz).
Face ao que o país tem assistido, pelo menos, na última década e, mais recentemente, entre 2022 e os dias de hoje (a semana passada, por exemplo), o que se esperaria era que o poder político (Presidente e Assembleia da República e Governo) e a sociedade, e o próprio setor, parassem, por breves momentos que fosse (como o fizeram os 100 signatários do Manifesto pela Reforma da Justiça) para refletir, avaliar, questionar e repensar os caminhos que a Justiça trilha, nos dias de hoje, e o seu futuro.
Sobre a recente polémica em torno da transcrição das escutas de conversas entre António Costa e João Galamba, apensas ao processo “Influencer”, e tornadas, cirúrgica e intencionalmente, públicas pelo Ministério Público, a edição semanal do “Debaixo dos Arcos”, no Diário de Aveiro de amanhã, dará disso nota.
Mas porque o espaço (no jornal) é, obviamente, limitado, cabe, por antecipação, refletir sobre um outro lado de toda esta polémica, sem deixar de alargar os horizontes da crítica: o papel do jornalismo.
A transcrição, sublinhe-se “a transcrição”, das escutas foram disponibilizadas por alguém do Ministério Público, em exclusivo (lago surreal), à CNN e à TVI. Pasme-se, nisto não há coincidências, ou como também se diz “não acredito em bruxas, mas que as há, há-as”, logo após o lançamento do novo canal de televisão, NOW, onde António Costa é comentador residente (entre outros).
Ao título da crónica da edição do Diário de Aveiro de amanhã (24 de junho), “Uma Justiça que fere a democracia (quando a devia cuidar)” e ao primeiro parágrafo do texto, “Num Estado de Direito Democrático a separação de poderes entre a Justiça e a Política é mais que estruturante, é essencial para o fortalecimento e sobrevivência da democracia”, poderíamos acrescentar a importância que a Comunicação Social também tem para a democracia, como pilar fundamental e garante dos valores da liberdade, do essencial direito a informar e a ser informado, com rigor, com verdade, com contraditório, com escrutínio e trabalho de investigação que avalizem a factualidade, a realidade e as dinâmicas da sociedade.
Paradoxalmente, é a democracia que faculta o espaço para que alguns, em total desprezo pelos valores da própria democracia, da liberdade responsável e do Estado de Direito, mintam, falseiem, difamem, enganem, acusem e caluniem infundadamente, sem que se sujeitem ao contraditório e ao confronto com a verdade.
Há cerca de duas semanas, a propósito de mais um ataque à democracia e ao jornalismo, durante a campanha eleitoral para as Europeias, André Ventura acusava os jornalistas de serem “inimigos do povo, inimigos das pessoas” (logo um partido e um líder que têm sido, inaceitavelmente, levados ao colo pela comunicação social), classificando a comunicação, nomeadamente a SIC, como “miserável”. As acusações surgiram após o partido da extrema-direita ter sido confrontado com a manipulação de um vídeo com a interação de André Ventura com um imigrante do Bangladesh, na Póvoa do Varzim. A este momento seguiram-se outras manipulações e críticas à SIC e aos jornalistas.
Veio, na altura, o Sindicato dos Jornalistas defender, e muito bem, os jornalistas e acusando a extrema-direita de retrocesso nos valores democráticos e exigir que André Ventura se retrate das infundadas e injustas acusações proferidas. Para além do processo oficioso iniciado pela Entidade Reguladora da Comunicação (ERC)… finalmente! Atacar, condenar, ofender, perseguir e ameaçar o “mensageiro” é condicionar, pressionar, calar e demudar a realidade e a liberdade.
Se é mais que justa e justificável a posição do Sindicato, lamenta-se que a mesma não seja mais regular e frequente e atenta a tantas outras situações, que têm colocado em causa jornalistas, o jornalismo e a democracia.
Depois do empenho demonstrado na solução da crise da Global Media, no final de 2023, em relação ao JN, TSF e Jogo (entre outros) e depois das importante manifestações de 14 de março (greve), como exemplos, esperava-se também reações veementes e enérgicas perante a manutenção do impasse da crise no Diário de Notícias, a solidariedade com o conflito judicial que opunha Fernanda Câncio e alguns títulos do ex-Grupo Cofina Media (agora, Medialivre), as ações de libertinagem contra as instalações do Observador, ou, ainda, perante a posição pública tomada em relação ao Chega não tenha tido a coragem, também, de criticar as opções editoriais quando, na noite eleitoral, algumas televisões (nem todas, verdade) interrompem o discurso de vitória de Marta Temido com declarações do 3.º partido mais votado, quase ex aequo, com a IL. É que são demasiados tiros nos pés que, por mais que queiramos promover e defender a causa e os profissionais, tornam difícil a tarefa e colocam também o jornalismo e os jornalistas (tomando-se o todo pela parte, infelizmente) na linha da frente no ataque à democracia. Assim como, agora, no caso da revelação da transcrição das escutas.
O direito de informar, assim como direito de sermos informados, não é anárquico, nem arbitrário. E, como quase todos os direitos, não é, em si mesmo, um direito absoluto. Despido do sentido de responsabilidade, rigor, veracidade e, acima de tudo, de ética e deontologia jornalística, informar e comunicar perde o seu sentido e a sua essência. Rapidamente entramos no jogo do populismo e do radicalismo dos extremos (sejam à direita ou à esquerda) e do mercantilismo da informação, pressionada pela tirania concorrencial e do jugo da sustentabilidade sem regras. O princípio ou valor (ou teoria) jornalístico do interesse público não é, nem nunca deverá ser, o interesse do público. São coisas bem distintas.
À CNN e à TVI cabia toda a legitimidade, a ética e responsabilidade profissionais de não divulgar a informação recebida, sabendo-se a sua origem (o processo judicial onde estavam, indevida e ilegalmente, apensas), sabendo-se que não havia qualquer tipo de matéria criminal ou ilegal subjacente. Apenas a legitimidade e o normal funcionamento do órgão Executivo do Estado, a mais que natural relação entre um Primeiro-ministro e um dos seus Ministros. Nem o assunto em si determinaria a fundamentação do valor noticioso, já que a matéria em causa, a opção política do Governo no despedimento da ex-CEO da TAP, foi mais que escrutada pela política, pela comunicação social, pela opinião pública, por comissões parlamentares e pela Assembleia da República, estando, agora no universo dos Tribunais (a questão administrativa da indemnização ou não indemnização).
Se as escutas tivessem conteúdo criminal, a sua divulgação, durante a fase investigatória, é crime, porque não cabe à “praça pública” o julgamento prévio. Se não têm qualquer relevância judicial, bem pior porque é mera bisbilhotice e devassa da privacidade.
Assim como à Justiça, no caso ao Ministério Público, não cabe o julgamento político, também ao jornalismo não cabe substituir a sua missão e o seu papel pela função justicialista. O que assistimos foi, infelizmente, por ambas as partes (judicial e informativa) a um mero atentado contra o carácter político do ex-Primeiro Ministro.
Critica-se e condena-se o Ministério Público por divulgar transcrições de escutas que apenas comportam informações políticas que não têm qualquer fundamento criminal e, muito menos, uma relação com os processos em investigação. O que atenta contra os mais básicos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Critica-se e lamenta-se um jornalismo que, embarcando em iguais pressupostos, desrespeita a própria liberdade informar, os direitos fundamentais, a democracia e não dignifica a sua função, perdendo valor e relevância.
E também aqui fez falta ouvirmos a voz do Sindicato dos Jornalistas.