O Direito à Cidade
a cidadania e o poder (governo) local
(fonte: Orgânico, em organico.arq.br)
O nosso Estado de Direito e o sistema democrático assentam, entre outros fatores, na representatividade eleitoral, seja a nível nacional, seja a nível local: aos eleitos é-lhes conferida (pelo voto) a legitimidade de representarem os cidadãos. No entanto, esta legitimação não concede ao eleito a apropriação do poder que lhe é adstrito. A representatividade atribui a responsabilidade ao eleito de zelar pela vontade e pelos interesses de quem elege e não o uso (e quantas vezes abuso) arbitrário dessa responsabilização democrática.
Mais ainda… ao eleito cabe-lhe o direito de não ficar, política e democraticamente, refém apenas do ato eleitoral de 4 em 4 anos. Cabe-lhe o direito de participar, intervir, criticar e interferir nas dinâmicas que impactam com o seu quotidiano e com as suas vivências. Conceder não significa, nem é o mesmo que transferir ou ceder (entregar). É delegar ou confiar.
A polémica (já aqui referida na semana passada) que se instalou com o Memorial Evocativo da Muralha de Aveiro, obra de autoria do arquiteto Siza Vieira, vai muito para além das reações dos cidadãos, principalmente dos aveirenses, ultrapassa as fronteiras do gostar ou não gostar (com mais ou menos capacidade técnica avaliativa), do bonito ou feio.
Um território é determinado por um conjunto de realidades que o caracterizam: ambiente, urbanismo, arquitetura, mobilidade, infraestruturas, economia, turismo, habitação, …, preferencialmente conjugadas entre si. Mas essencialmente, é determinado pelas vivências e dinâmicas sociais daqueles que o integram (ou deveriam integrar). Ser, Estar, Participar ou Partilhar determinam a legitimidade e o direito ao sentido de pertença, identidade e à apropriação social do espaço público (território), tal como defende Henri Lefebvre, no “Direito à Cidade”: um espaço vivido tem que ser, por direito, um espaço percebido e um espaço concebido por quem o usa e o vivencia, e não por quem o produz ou detém o poder.
A Constituição determina um conjunto alargado de direitos políticos, civis e sociais, mas infelizmente, mesmo após sete revisões em quase 50 anos (mais do que a Carta Constitucional de 1826 e que vigorou durante 72 anos), o Direito à Cidade (que não é apenas habitação ou serviços) ainda não é um direito social legitimamente consagrado.
Assim como, infelizmente, o Poder/Governo Local, apesar de todas as políticas que vão exigindo reformas no exercício funcional, estagnou no tempo em relação à sua conceção, missão e visão, e não consegue apreender que a governação da coisa comum, neste caso, do espaço e do território, ganha valor e coerência se partilhar, incluir e integrar as vontades, as perceções e as conceções daqueles que, por direito próprio, vivem a cidade, para lá do mero espaço proprietário (e individualizado) das suas habitações.
A apropriação social (diferente de propriedade/posse individual) e coletiva do espaço urbano, de um território, não enfraquece ou fragiliza (desvaloriza) o poder de quem governa. Antes pelo contrário, ao assegurar o direito a quem vive esse espaço público de defini-lo, desenhá-lo e construí-lo, legitima esse mesmo poder e atribui-lhe uma maior responsabilidade e representação democrática, enquanto garante do exercício permanente de cidadania, de participação, de corresponsabilização e de valorização do direito (coletivo) dos cidadãos à cidade que habitam, que usam, que partilham e que socializam.
O valor inquantificável do voto não pode ser reduzido a um mero ato pontual numa democracia que se quer vivida sempre (e não apenas ocasionalmente), nem pode, simplesmente, deturpar o princípio da representatividade, negando a legitimidade do direito de decisão aos cidadãos através da indevida apropriação da função e missão governativa.
Ser presidente de uma Junta de Freguesia ou de uma Câmara Municipal não é ser dono do território e do espaço público que o integra. Aliás, é no sentido de missão de serviço público (e do público/cidadão) que assenta a função, bem diferente de apropriação do poder. Esse poder é-lhe cedido, não lhe pertence enquanto bem individual. Por isso, tantas vezes se diz que “não se é presidente, está-se como presidente”, porque esse ser e possuir cabe, por direito, a quem vive a cidade (território).