O 'fantasma' da crise
ou os efeitos pré-halloween da política
(crédito da imagem: Hélder Oliveira, no jornal Expresso)
Não importa tecer, nesta fase, qualquer comentário qualitativo ao Orçamento do Estado para 2022 (OE2022), até porque ele ainda não é, de todo, conhecido, e, se passar na primeira aprovação na Assembleia da República, na generalidade, ainda terá que baixar à especialidade, o que significa que muita água ainda irá passar por debaixo da ponte.
Importa, isso sim, uma reflexão (mesmo que sucinta) sobre a putativa e tão badalada crise política que um eventual chumbo do OE2022 possa provocar: quem ganha, quem perde, quem a quer ou quem a abomine.
É certo que, nomeadamente após as eleições legislativas de 2019 e com o fim do acordo escrito, "exigido" por Cavaco Silva em 2015, entre o Governo e os partidos da geringonça, tem sido cíclico este chorradilho de acusações na hora das negociações à esquerda dos sucessivos Orçamentos do Estado. Faz parte de uma estratégia e de um jogo político-partidário, um braço de ferro entre partidos que assumiram, a todo o custo, mesmo com a necessidade de se engolirem "elefantes" (mais do que "sapos") e de se atropelarem princípios programáticos, sabendo-se da realidade conjuntural de uma governação minoritária.
Mas se em anos anteriores, apesar de alguns sinais evidentes (o BE votou contra a proposta de Orçamento do Estado para 2021, na votação final global... o OE2021 seria aprovado com os votos a favor do PS e as abstenções do PCP, PEV, PAN e das deputadas não inscritas Cristiana Rodrigues e Joacine Katar Moreira - Bloco de Esquerda, PSD, CDS-PP, Chega e Iniciativa Liberal votaram contra o documento), o Orçamento do Estado acabaria por ser viabilizado, não se afigura certo que, neste final de 2021, a tão indesejada (ou não) crise política não venha a bater à porta e acabar por entrar.
Até porque há ainda um outro pequeno-grande por(maior)menor: por mais que o Governo se esforce por esconder e desviar as atenções desse contexto, é óbvio que o grande entrave ao processo negocial com BE e PCP não são as medidas em si mesmas... são as exigências da União Europeia, os compromissos que foram firmados para que Portugal receba os quase 50 mil milhões de euros, do bolo total de 1,8 biliões que sustentam o Plano de Recuperação e Resiliência da União Europeia (a tal "bazuca") pós-pandemia.
Tomando como provável (mesmo que indesejável) esta realidade, o que estará em causa ou o que poderá ainda pesar no recuo e na viabilização orçamental?
1. O que pesa na viabilização e no recuo das posições extremadas, com deadline na próxima quarta-feira?
A origem da geringonça, em 2015, teve (e ainda tem) como óbvio e único princípio, exclusivo, o afastamento da direita da governação do país. Nada mais que isto. Não há, nem nunca houve, qualquer convergência estratégica e programática, muito menos ideológica, do PS/Governo, BE e PCP para os destinos de Portugal. Bastava, aliás, olharmos para o que foram as campanhas eleitorais de 2015 e 2019, pelas sucessivas acusações entre as partes, que são muito mais que meras divergências pontuais. São divergências mas de facto.
Não será fácil ao BE e ao PCP assumirem o ónus de provocarem eleições antecipadas e criarem condições para uma mudança política na governação do país. Além disso, carregariam por muitos anos (tal como aconteceu com o BE em 2011, aquando da queda do governo de José Sócrates) este peso político de terem sido responsáveis pelo fim e queda da geringonça, feito histórico tão badalado e tão embandeirado.
Já ao PS e ao Governo restará a "cruz" de não terem conseguido (como não têm conseguido nos últimos anos) dialogar com e unir a Esquerda, pro forma a sedimentar e consolidar esta alternativa de governação. E, concretamente ao PS, pesa ainda a incerteza quanto ao desfecho de umas eleições antecipadas, tão perto dos recentes resultados eleitorais das Autárquicas deste ano. É certo que o partido venceu as eleições... mas há o natural desgaste político da governação e também não deixa de ser verdade que os socialistas viram, nestas autárquicas, o PSD crescer, perderam, no global, número de votos e, também, um significativo número de autarquias, em relação a 2017... por mais spin e retórica que seja usada para abafar tal realidade.
Não será, pois, de estranhar que, após tanto alarido, sejam, à ultíssima hora, encontrados argumentos e fundamentos que justifiquem a "conquista" de mais um acordo (mesmo que ficcionado, como os últimos anos têm vindo a revelar).
2. Quem ganha com a crise política do chumbo da proposta do OE2022?
Será sempre uma questão de futurologia política, mas há, obviamente, algumas conjunturas que poderão fazer pender a balança eleitoral, caso haja eleições antecipadas.
À cabeça, apesar do referido anteriormente, o próprio PS. A vitimização política colheu sempre grandes frutos no eleitorado e poderá haver, nas hostes socialistas, quem sonhe com uma, sempre possível, conquista da maioria absoluta. No entanto, os receios são significativos: a imagem de um falhanço total da geringonça, no falhanço da construção de uma alternativa de governança, consistente e sólida, à Esquerda, no desgaste governativo, nomeadamente no que era a esperança dos portugueses numa retoma mais rápida do pré-Troika... tudo isto em cerca de 6 anos apenas (menos de duas legislaturas).
Por outro lado, para a maioria dos socialistas e das estruturas do seu aparelho partidário, uma derrota eleitoral (ou, até, o regresso à conjuntura de 2015, no caso de minoria e dependência de nova geringonça) teria alguns impactos e estilhaços internos, com a liderança de António Costa a sofrer um significativo descrédito e com a perspectiva de sair fragilizada.
Quem poderia também ganhar o louro da vitória poderia ser o PSD. O argumento e a mensagem política do falhanço da geringonça, e consequentemente da governação, seria sempre uma bandeira extremamente relevante num processo eleitoral. Relevante e "apetitosa", tornando-se facilmente num pilar de alternativa governativa. Mas há, como em relação ao PS, um senão... Ao contrário do que previa e sugeria (e bem) Rui Rio no Conselho Nacional - o adiamento da data da realização das directas internas - não só este desviar de atenções e de foco (no caso de eleições antecipadas) se manteve, como 'histórica e ciclicamente' lá surgiu a surreal e obtusa candidatura de Paulo Rangel. Este contexto, não só enfraquecerá o combate político que será extremamente importante e exigente, como irá quebrar a unidade partidária, não só pela fractura de duas candidaturas oponentes, mas também com o (re)surgimento (para muitos militantes e simpatizantes eleitores do partido) de alguma 'doutrina' do passismo e do cavaquismo (cruzes canhoto).
3. Quem perde?
Claramente (e mais uma vez) o BE e o PCP. Esta colagem ao PS e à governação, ao contrário do que poderia ser expectável, apenas tem servido para enfraquecer, eleitoralmente, os dois partidos. Basta recordar os resultados das legislativas de 2019 (com quedas acentuadíssimas do número de votos), as próprias Europeias de 2020 e, mais recentemente, o descalabro das autárquicas, apesar do BE nunca ter conseguido alcançar esta vertente do Poder Local.
E pelas razões já atrás apontadas, o ónus político de terem provocado uma crise política e terem aniquilado o sonho de um Portugal verdadeiramente à esquerda, algo perdido nos longínquos tempos do PREC.
Mas há ainda quem perca muito mais que tudo isto: Portugal e os portugueses.
Sendo certo que do PS para a direita há quem esfregue as mãos com a possibilidade de uma dissolução da Assembleia da República, sejamos pragmáticos e realistas (mesmo que isso custe tanto concordar com o Presidente da República): num tempo em que Portugal e a comunidade internacional renasce das "cinzas" de uma crise pandémica que teve tanto de inédito e curioso, como de grave, numa altura em que há a necessidade de aplicar, de forma sustentada e eficaz, os fundos da chamada "bazuca europeia" (por mais que se discorde da sua estruturação e definição), num momento em que se preparam as estratégias do Portugal 2030, o que não precisamos de todo é de um "revés governativo".