O harakiri da democracia
o mundo ainda consegue ficar pior...
(fonte: Reuters)
O pior dos sistemas políticos, excluindo todos os outros, tem esta trágica versatilidade de se robustecer e reforçar, e, simultaneamente, de se autodestruir e suicidar.
No início deste século XXI (em 2001), a propósito dos ataques de 11 de setembro, colocava-se, amiúde, a questão se o mundo estaria ou não mais inseguro e perigoso. Todos os acontecimentos posteriores ressuscitaram o pesadelo da Guerra do Golfo, na década de 90. A Invasão do Iraque, o terrorismo, o Afeganistão, o surgimento do fundamentalismo islâmico em África, o Médio Oriente, os conflitos no coração do continente africano e as consequentes tragédias humanitárias, até à invasão da Ucrânia e ao ressurgimento do conflito no West Bank e no Levante Mediterrâneo, com especial foco na Faixa de Gaza.
Como se isso não fosse, por si só, mais que suficiente e preocupante, janeiro de 2025 transforma o mundo num alarmante estado de perigosidade, conflitualidade e de insegurança. Alarmante porque preocupante, condenável e, ao mesmo tempo, assustador.
A geopolítica e a geoestratégica são, pela nova conjuntura norte-americana, meras marionetas no explodir de um oligarquismo económico e financeiro dominador e asfixiante da liberdade, dos direitos e da própria democracia, manietados pelo poder do capital de uns poucos. Um mundo que tende a ser extremista, desigual, estratificado e elitista, segregador, explorador e dominado pelo valor mercantilista.
Aquela que sempre foi tida, de forma generalizada (mesmo que não consensual), como a maior democracia do mundo está, desde 20 de janeiro de 2025, completamente aniquilada nos seus valores e nos seus princípios fundamentais.
Ruíram os princípios dos mecanismos de proteção da democracia norte-americana, os seus “cheks anda balances”, com Trump a assegurar todos os centros do poder: presidência, senado, Câmara dos Representantes e uma maioria favorável no sistema Judicial (Supremo Tribunal).
A política, e mais perigosamente, a liderança do país e o peso nas relações globalizadas, transformou-se num mero jogo estratégico financeiro e económico, onde prevalecem os interesses, não do desenvolvimento, do equilíbrio, da solidariedade e do bem-estar, mas os individuais dos mais ricos e dos que se veem, egocentricamente, mais poderosos.
O mundo, muito para além dos Estados Unidos da América, está nas mãos do pior pesadelo oligárquico, da pior relação kafkiana da democracia e da política por uma Administração Americana sem qualquer pudor, noção política ou capaz de considerar as consequências das suas ações, responsabilidades e estratégicas.
Trump, Musk e companhia, não têm amigos ou parceiros. Movem-nos os meros interesses pessoais, e até estes, eventualmente, conflituantes entre si.
Só numa semana, o Mundo virou de pernas para o ar: os saneamentos políticos (é curioso, ou não, que uma das primeiras medidas tenha sido a demissão de Linda Fagan, a primeira mulher a comandar a Guarda Costeira Americana, desde 2021), a revogação ou reversão de políticas sociais como a lei do Aborto, a aproximação à extrema-direita mais radical (como a ligação de Musk à AdF, na Alemanha), a ingerência na soberania dos Estados livres (Dinamarca / Gronelândia, Panamá, Canadá, México, Inglaterra), o desprezo pelos direitos humanos, a pressão económica sobre a Europa, o abandono do Acordo de Paris e da Organização Mundial da Saúde, a pressão sobre a NATO e a ameaça aos países que a integram (a fasquia dos 5% de despesa militar não é uma questão de segurança… é a exigência de compra de material bélico americano e o aumento da receita da economia militar norte-americana) como se a guerra fosse solução para a guerra ou trouxesse mais segurança. E mais recentemente a entrega a Israel de material bélico com um grau elevado de capacidade de destruição, capaz de arrasar, definitivamente, Gaza, limpá-la dos palestinianos e deixá-la livre para a expansão israelita e a exploração económica do território.
Se não houver uma mobilização global forte, uma concentração de esforços e recursos dos países que acreditam que a democracia, mesmo demasiado imperfeita, é o melhor de todos os sistemas e que garante um Estado de Direito livre, socialmente responsável e humanista, promotor dos direitos e das liberdades fundamentais, o mundo, apesar da realidade atual, ainda conseguirá ficar pior.
Poderíamos começar por seguir o exemplo da manifestação de milhares de alemães, ontem (sábado), no Portão de Brandemburgo, em Berlim, a favor dos valores da democracia e contra a extrema-direita e o ressurgimento do nacionalismo populista (após o comício da AdF que contou com a mensagem de Elon Musk).