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Debaixo dos Arcos

Espaço de encontro, tertúlia espontânea, diz-que-disse, fofoquice, críticas e louvores... zona nobre de Aveiro, marcada pela história e pelo tempo, onde as pessoas se encontravam e conversavam sobre tudo e nada.

O maior risco para um Estado de Direito? A democracia.

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Publicado na edição, de hoje (11DEZ2023), do Diário de Aveiro (página 15).

Há cerca de 76 anos (novembro de 1947), Winston Churchill afirmava que "a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as outras já experimentadas ao longo da história". Apesar de significativamente “gasta”, não deixa de ser uma das expressões de referência para justificar e defender a relevância da democracia, e das suas virtudes, em relação a outros sistemas políticos.

Paradoxalmente, um dos maiores riscos para a sua afirmação é a própria democracia, a relação que a dinâmica do sistema estabelece entre os seus valores (liberdade, ética, igualdade, transparência, responsabilidade social, defesa e garante dos direitos e garantias fundamentais) e a sua estruturação (Poder Político – Estado, Parlamento e Governação – e o Poder Judicial), pilares que assentam, entre outros princípios, na sua autonomia e independência. E o risco surge - e tem surgido, nos últimos tempos, com contornos significativos - quando a linha ténue entre a independência e a autonomia e a relação entre os poderes é quebrada ou extrapolada: a judicialização do poder político (central, regional ou local… é transversal) tem, de facto, minado a democracia e o Estado de Direito na qual assenta. E os impactos e os danos na democracia do exercício invertido e perverso desse poder judicial são, demasiado, perigosos. Não só para a própria afirmação da democracia, para a forma como a sociedade e os cidadãos encaram o sistema e as instituições, mas também para os políticos e a política.

Não vou, de forma alguma, personalizar ou especificar realidades porque a transversalidade do contexto é significativa. Mas apenas para clarificar, a mero título exemplificativo, importa recordar a inconsequência dos processos que envolveram Miguel Macedo, Rui Rio, Azeredo Lopes, Eduardo Cabrita, Siza Vieira, Fernando Medina, Duarte Cordeiro e Graça Fonseca, entre muitos outros. Ou, a nível local, Rui Moreira (caso Selminho), Luísa Salgueiro (e o surrealismo de uma pseudo-acusação por algo que a própria lei não contempla – concurso público para cargo de chefe do gabinete – e que equivaleria a acusar todos os outros 307 presidentes de câmara), ou, mais recentemente, Nuno Mascarenhas (caso Data Center – Sines), também como meros exemplos.

A verdade é que há um enraizado (e perverso) mito que o poder e a política corroem, que os políticos são todos corruptos ou corruptíveis, que todas as ações que envolvem o Poder Judicial representam uma acusação de facto, que essas ações são inquestionáveis, que não podem ser colocadas em causa ou que não se exijam explicações e responsabilidades (como no Poder Político), sem que isso signifique querermos encobrir ilegalidades (morais, éticas ou formais) ou crimes ou influenciar o juízo judicial. Esta realidade, não só é uma falácia e não corresponde à verdade, como destrói o sistema democrático à custa de uma banalização dos processos políticos e judiciais, e, fundamentalmente, do aproveitamento populista e radical de políticos e partidos antissistema dentro do próprio sistema, anti Estado mas que a ele se agarram e imploram como instância final (como são o caso do IL e do Chega).

Mas não só… Ainda há cerca de dois meses, a coordenadora do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, sugeria que o imposto municipal IMT fosse canalizado para um Fundo Autárquico nacional (a criar) como forma de combater uma hipotética especulação imobiliária e a sua relação com o Poder Local. Com isto, ficava claro, nas palavras da líder bloquista, que os presidentes de câmara e os autarcas eleitos (num total de 2.064, em 2021) são passíveis de serem corrompidos ou corromperem em detrimento de uma gestão das finanças locais transparente. Nada mais populista e obsessivo. Se há setor na sociedade portuguesa e na política que é mais escrutinado, mais fiscalizado, mais vigiado regularmente, seja pelos cidadãos, seja pelas entidades fiscalizadores, seja pelo próprio poder judicial, é o Poder Local.

É esta obsessão (alvo fácil) e visão da política e dos políticos; é esta forma displicente, descuidada, tornada pública sem fundamentos ou indícios fortes, consistentes, sólidos e provados; é o espetáculo mediático previamente planeado das ações e procedimentos judiciais; são as convenientes e programadas fugas de informação que quebram o sigilo e o “segredo” (e aqui, aa comunicação social tem uma enorme quota parte de responsabilidade, principalmente por não distinguir, propositadamente, “interesse público” de “interesse do público”); é a ausência de explicações e justificações que a democracia exige e obriga, que têm tornado a ação do Poder Judicial, sobre a política, a democracia, a sociedade e as pessoas, numa espécie de justiceiro imaculado, mas que, em termos práticos, tem provocado mais danos na democracia do que contribuído para a solidez do sistema, do Estado e da sociedade. De tal forma, que os portugueses que olham para a Justiça de uma forma extremamente negativa e crítica, são os mesmos portugueses que rasgam vestes e bradam aso céus, assistindo, hipocritamente, à morte cívica e pública de pessoas (políticos, figuras públicas, …), instituições e do próprio sistema político.

Os mesmos portugueses e Poder Judicial que, depois dos respetivos “assassinatos de carácter e de funções” em praça pública, que são irreversíveis porque ficam entranhados na memória e na história, ainda não perceberam que não haverá nada pior que o declínio da democracia em favor, como diria Churchill, de todos os outros sistemas políticos, do anarquismo, do radicalismo e do extremismo.

No dia em que o “caos” for mais premente, não haverá quem queira, de forma livre e consciente, exercer a nobreza de um cargo público e/ou político, sujeitando-se, logo à partida, a um rótulo preconceituoso, crítico e acusador, mesmo que falso.

No dia em que a democracia e a política (partidos e políticos) caírem no vazio e no vácuo, talvez aí o Poder Judicial acorde… se não for tarde demais.