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Debaixo dos Arcos

Espaço de encontro, tertúlia espontânea, diz-que-disse, fofoquice, críticas e louvores... zona nobre de Aveiro, marcada pela história e pelo tempo, onde as pessoas se encontravam e conversavam sobre tudo e nada.

O Palco do nosso contentamento...

ou como passamos a santa vidinha a olhar para a árvore e esquecemos a floresta

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Os portugueses em geral (e quase todos em particular) têm um gene muito peculiar e particular do qual, teimosamente, não se conseguem desfazer: o trovadorismo medieval (Idade Média - séculos XV e XVI) que sustenta o escárnio e o mal-dizer. Fazendo jus à nossa permanente veia (e bem) "gil vicentina".
A única verdadeira mutação desse gene, sentida nos dias de hoje, é a de que, para além de dizermos mal de tudo e de qualquer coisa - maioritariamente fora de horas e a despropósito - passamos e perdemos demasiado tempo e recursos a olhar sempre para a árvore esquecendo (às vezes propositadamente) a floresta.

Nas últimas horas, o país parou porque (aparentemente), desde a cúpula da Igreja Católica em Portugal até ao mais simples e comum do ateu ou agnóstico português, todos se "magoaram" com o valor (também ele mutável) de um palco. Mas apesar da "dor" sentida quando embatemos nos cerca de 4, 5 ou 6 milhões de euros, tem sido um fartote de avaliações técnico-financeiras, arquitetónicas, sociais e políticas em torno do denominado Palco Tejo das Jornadas Mundiais da Juventude que acontecerão, em Lisboa, de 1 a 6 de agosto deste ano.

Pois bem... devo confessar que fiquei preocupado comigo mesmo porque, por causa de toda a polémica, dei comigo perfeitamente insensível à dor.
E mais uma vez, o povo dá azo à sua veia trovadoresca vicentina e foca toda a sua ira numa árvore, sem olhar para a floresta (esteja ela a arder ou a "florir"). De repente, o SNS está a salvo; a Escola é um oásis; todos suportamos a Inflação e as Famílias deixaram de ter dificuldades em pagar contas, rendas, energia, alimentos, medicamentes, etc.;, o Desemprego afinal não sobe (é miragem); e na política a Oposição apenas consegue movimentar-se nos "casos e casinhos" do Governo, sem conseguir apresentar uma única alternativa às políticas de António Costa ou à sua Governação. Tudo vai bem no "paraíso nacional"... exceção para um "palco que magoa".

Pessoalmente, diz-me muito pouco o dito Palco e os seus milhões. O evento está orçamentado, no que cabe à responsabilidade do Governo/Câmara Municipal de Lisboa (o que é importante para o caso), em 35 milhões de euros. O que este valor suporta é irrelevante. O que importa é que no final, ao invés do que é a "nossa tradição de gestão", não haja derrapagem. O que importa é a projeção futura do investimento realizado (para não deixar às moscas e ao abandono "mais estádios". O que é importante é perceber como são feitas as devidas contratações públicas.
O que a polémica e as críticas tendem a esquecer, no caso, é o contexto, a realidade, a génese e os factos.

O anúncio da realização das Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) aconteceu a 27 de janeiro de 2019. O evento está assumido há 4 anos. Facto.
A realização das JMJ foi, mesmo para um Estado laico, maioritariamente consensual, e, seja do ponto de vista económico, turístico, de afirmação nacional e social, é inquestionável a dimensão do seu retorno para Portugal. Apesar de promovida pela Igreja Católica, Apostólica, Romana, e a presença do Papa, o evento é ecuménico (por um lado) e dirigido, preferencialmente, à juventude. Facto.
A decisão da realização das JMJ foi uma responsabilidade bipartida entre Igreja Católica e o Estado português. No entanto, a decisão da localização e do aproveitamento do evento para a requalificação urbana é, exclusivamente, política.
Os custos do evento - no que é conhecido nesta particularidade - foram orçamentados em 35 milhões de euros. Bem nos lembramos da repartição das responsabilidades dos encargos quando Carlos Moedas assumiu a presidência da autarquia lisboeta (colocando, até, em causa a concretização da iniciativa).
Não foi a Igreja Católica Portuguesa que definiu o aproveitamento (e bem) do investimento para a Requalificação Urbana de zona degradada na Área Metropolitana de Lisboa (envolvendo os municípios de Lisboa e de Loures, essencialmente). Foi uma decisão Governativa e Autárquica. Facto.
Mas como em tantas outras circunstâncias (Expo 98, Centro Cultural de Belém, Euro 2004, ... and so on) o debate, a avaliação, a ponderação estratégica, os custos-benefícios (de variada natureza), no nosso país, vem sempre fora de horas e a destempo. Mais do que facto.
A verdade é que nada disto foi debatido, questionado, mediatizado na devida altura.
Vir agora meio-mundo rasgar vestes, a 6 meses da abertura de portas das JMJ, é, no mínimo, pueril, inconsequente e banal.

A requalificação urbana, nomeadamente em áreas devolutas e degradadas, e mais ainda em zonas de instabilidade do solo (forte permeabilização e pantanosa) tem custos elevados, mas com evidentes benefícios abrangentes (a requalificação em si, a qualidade de vida, a oportunidade de fruição variada de um espaço reabilitado).

A discussão deve ser, agora, nesta fase, a de perceber qual o futuro daquele espaço após o dia 6 de agosto, e se o valor previsto dos 35 milhões é, legal e eticamente, cumprido, sem que, à boa maneira portuguesa, dispare para valores, esses sim, que magoem e muito.

Se esses 35 milhões implicam um palco de 6 milhões (que será uma estrutura fixa e permanente, de utilização duradoura e variada, e não uma estrutura volátil e de curta utilização - 2 ou 3 dias), um sistema de som e imagem (com cablagem dedicada) de 8 milhões, e permitam 21 milhões de infraestruturas básicas de requalificação (redes de energia, de comunicação, de água e saneamento) é que importa valorizar e controlar.

O resto é politiquice e a habitual medição tuga de "pilinhas de responsabilidades".
Vimos sempre tarde e a más horas para a discussão. E como não o fazemos no devido tempo, arranjamos sempre justificação para exprimir o nosso tradicional "escárnio e mal-dizer".