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Debaixo dos Arcos

Espaço de encontro, tertúlia espontânea, diz-que-disse, fofoquice, críticas e louvores... zona nobre de Aveiro, marcada pela história e pelo tempo, onde as pessoas se encontravam e conversavam sobre tudo e nada.

O que pode esconder uma morte, para além da vida

Bairro Zambujal (in expresso).jpg
(captura técnica, in jornal Expresso)

São diversificados e inúmeros os contextos em que se defende e proclama o que deveria ser, em si mesmo, óbvio e natural: a vida e a dignidade humana. A realidade demonstra que a assunção da “nossa verdade” e dos “nossos valores” como únicos omite o inquestionável e irrefutável: o respeito pelo outro como igual, desde que nasce até que morre. Ciclo que, excluindo o próprio, ninguém tem o direito de quebrar.
Nada justifica ou legitima a morte (a própria legítima defesa comporta uma complexidade, mesmo jurídica, que nada tem de linear). Nada justifica ou legitima o uso da força ou do poder sobre a vida do outro ou da sua dignidade.

Não tenho qualquer moral para fazer juízos de valor ou qualquer julgamento prévio (isso cabe, por legítimo direito, ao poder judicial). Mas há três factos incontornáveis no caso do Bairro do Zambujal.
O primeiro, e o principal, é que Odair Moniz, cabo-verdiano de 43 anos (com todo o contexto bem medido porque não é irrelevante), casado e pai de 3 filhos, foi, injustificadamente, morto, numa operação policial. O segundo, é que cabe à investigação (MAI, PGR e PJ) e à justiça (Tribunais) apurar as devidas responsabilidades pela morte deste cidadão (fosse cabo-verdiano, português, do mundo… era uma pessoa com pleno direito à vida). O terceiro, sem qualquer tentativa de justificar o injustificável, é a responsabilização moral do acontecimento que cabe, em primeira instância, à hierarquia da PSP pelo envio de 2 jovens policias, com pouco mais de 20 anos e apenas 2 ou 3 anos de experiência profissional, para um contexto que se sabe e reconhece como complexo.
Infelizmente, a morte de Odair Moniz vai para além do seu próprio fim precoce e “esconde” mais do que a perda da vida.

Quando este devia ser um tempo de luto, de reflexão, de investigação e justiça, transformou-se num avolumar do ódio, do racismo, do populismo político e ideológico, e de violência.
Independentemente da maior ou menor dimensão, era expectável a explosão de revolta capaz de gerar a mais ténue violência. Mesmo que criticável, questionável e, não menos, indesejável, nada disto surge do vácuo… Odair Moniz foi apenas o acender dum rastilho.

A forma preconceituosa e enraizada num inaceitável complexo de superioridade moral e social como a sociedade e o poder (local e nacional) olham para o território (como uma mera ocupação do espaço, sem considerar que este não existe sem pessoas e sem as subjacentes dinâmicas socais) faz como que o recurso, não planeado e desestruturado, aos “bairros sociais” transformem as complexas realidades sociais em problemas de maior dimensão, avolumados num espaço fechado e pressionado, sem respostas mínimas (escola, saúde, transportes, atratividade), como se esta fosse a “última coca-cola no deserto” da solução para as necessidades de alojamento dos “indesejados” (ciganos, africanos, sem-abrigo, baixa estratificação social, etc.).
Sem se perceber que são pessoas, iguais nos seus direitos e liberdades, e não objetos que escondemos no sótão ou na cave porque não precisamos, não prestam ou não gostamos.
Sem se pensar que cidades queremos ou estamos a construir, sem políticas de inclusão ou socialização, sem projetos comunitários (glória e louvor a projetos de cidadania como os “Percursos Acompanhados” da CooperActiva e do CESIS), sem plena justiça social continuaremos, desde há 2,5 milhões de anos, a construir guetos em vez de erguermos territórios onde a liberdade e a dignidade da pessoa, e as respetivas dinâmicas socioeconómicas, são o seu capital mais precioso.

Alimentar o ódio e a exclusão nunca foi, e nunca será, solução, a começar pela responsabilização (ou a falta dela) do poder político que legitima, por indiferença ou alheamento, a narrativa racial, xenófoba e pseudonacionalista.
Muito menos por aqueles que, tendo a responsabilidade sobre o território que gerem, acham que a solução para as suas debilidades ou incompetências é tornar uma cidade o faroeste pistoleiro português ou substituírem-se ao direito jurídico só porque lhes dá jeito ou ainda, como no caso do presidente da autarquia de Loures (infelizmente do PS), que se acha no direito de reescrever a Constituição ou reinventar o Estado de Direito subscrevendo uma proposta, politica e socialmente ignóbil e desprezível, da extrema-direita em que confunde violência com o legítimo direito constitucional à habitação.
Assim vão as nossas cidades.

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