Pimenta no "dito cujo" dos outros é refresco.
Premissa: não há direitos absolutos (exceto o direito à vida e, mesmo esse, tem algumas reticências). O que significa dizer que liberdades também não (ou muito menos).
No entanto, a liberdade de informação (mais do que a própria liberdade de expressão) ganha um peso relevante nas diferentes dinâmicas da sociedade, e, por maioria de razões, num Estado Democrático e de Direito, sendo, por isso, de extrema importância a sua defesa e valorização. Mesmo que em pleno confronto com outros direitos, liberdades e garantias.
Vem isto a propósito da polémica instalada com a edição semanal (6 de julho) da "Spam Cartoon", na RTP, com o título "Carreira de Tiro", cartoon da autoria de Cristina Sampaio.
Antes de tudo, importa clarificar. O cartoon é tido como vertente jornalística, como o são os que ilustram alguns espaços dos jornais. Surge, então, a questão da liberdade de informação, mais do que a liberdade de expressão.
Ao caso, o cartoon "Carreira de Tiro" espelha os factos e a conjuntura que se viveu em França, com a morte do jovem Nahel, de 17 anos, filho de imigrantes africanos, morto com um tiro de um policia. O contexto, como é público, originou uma onda (criticável, diga-se) de contestação, violência, terror e destruição durante alguns dias, em algumas cidades francesas (como Paris ou Marselha, como exemplos). Algo que fez recordar acontecimentos, mais ou menos recentes (maio de 2020), nos Estados Unidos (Estado do Minnesota - caso George Floyd, e que resultaram também em momentos de revolta, como o movimento "Black Lives Matter".
E era isto que estava apenas em causa na mensagem espelhada no cartoon de Cristina Sampaio.
Posto isto, as reações críticas ao cartoon e à opção editorial da RTP são, no mínimo, incompreensíveis e, nalguns caso, surreais.
Primeiro, é inaceitável a pressão e a tentativa de ingerência num processo de liberdade de informação por parte dos partidos de oposição da direita parlamentar (ver o PSD no mesmo barco do CHEGA, neste processo, é notório e lamentável, mas diz muito do tabu que Montenegro - ainda - mantém em relação a hipotéticos acordos com a extrema direita portuguesa), à qual se juntou o (quase extinto) CDS. Os mesmos que se insurgiram contra a opinião crítica do Ministro da Cultura sobre os trabalhos da Comissão de Inquérito Parlamentar à gestão da TAP.
Esta atitude, para além de condenável, é demasiado perigosa para a liberdade de imprensa e para o jornalismo. A partir daqui todo e qualquer cenário de "censura" ou pressão parece poder passar a ser viável e um (triste) hábito.
Segundo, a posição da cúpula da PSP, expressa na intenção de apresentação de queixa-crime, ao Ministério Público, pelo diretor nacional da PSP, o superintendente-chefe Magina da Silva, sublinhada por posição idêntica do Sindicato Nacional da Carreira de Chefes da Polícia de Segurança Pública. Ambos invocam o argumento de que o cartoon emitido "não contribui para a desejável paz social", já que apresenta, ou representa, todos polícias como xenófobos e racistas (fonte: comunicado da PSP). O que nem sequer é verdade e nem é isso, como referido acima, que está em causa.
Não querendo, neste momento, entrar na discussão (já antiga) da alegada presença de racismo estrutural nas forças de segurança, a verdade é que a posição da liderança da PSP e do sindicato são, no mínimo, incoerentes com recentes acontecimentos e factos conhecidos: o inquérito a mensagens de ódio de polícias nas redes sociais (Aqui e Aqui) em risco de ser arquivado. Ou ainda mais recentemente o caso dos comentários racistas na Internet num anúncio de recrutamento para o curso de oficiais de polícia, no qual surge uma fotografia de um homem negro fardado.
Se o cartoon gerou algum (ou bastante) desconforto no seio das forças de segurança é compreensível. O que já não faz sentido, pelo histórico dos acontecimentos, é a apresentação da queixa-crime contra a RTP e contra a Spam Cartoon. Aliás, aparentemente, sem grande futuro ou consequência prática.
Terceiro, e ainda mais incompreensível a posição do Ministério da Administração junto da RTP. Só por mera intenção de solidariedade com as forças que tutela, é que se pode perceber, mas, neste caso, sem se poder aceitar, que o ministro José Luís Carneiro tenha manifestado, junto do presidente do Conselho de Administração da RTP, o seu desagrado (não sabemos se pessoal ou 'ministerial') com o facto do cartoon ter sido exibido. Segundo o Ministro da Administração Interna (fonte: Expresso), moveu-o "a necessidade de chamar a atenção da administração da RTP para o sentido de responsabilidade, para que a liberdade de expressão não coloque em causa a imagem e o prestigio das instituições”.
Ora, é por demais óbvio que o facto de haver quem não cumpra ou deturpe os princípios e valores de uma Instituição, isso não significa que todos os seus elementos e a própria Instituição espelhe esses incumprimentos ou desvios.
O que também significa, em nome da liberdade, da democracia e do Estado de Direito, é que não há Instituição, seja de que natureza for, ou qualquer setor da sociedade, que não seja passível de crítica ou de fiscalização.
Quarto, e por último.
Muito facilmente, quando os contextos são distantes ou estão em causa os "malfadados islamistas e imigrantes", enchemos o peito e martelamos os teclados com o (banalizado, diga-se" "Je Suis". Lembremo-nos do Charlie Hebdo ou do cartoon do António, banido e excluído do New York Times (em 2019). Agora, que nos toca mais próximo, apesar de erradamente (refere-se ao contexto francês), esquecem-nos facilmente da expressão icónica da biógrafa de Voltaire, Evelyn Beatrice Hall: "Posso não concordar com o que dizes, mas defenderei até à morte o direito o dizeres".
Je Suis, Cristina Sampaio.