Ponto Final. A última “epístola”
publicado na edição de hoje, 13 de setembro, do Diário de Aveiro.
Debaixo dos Arcos
Ponto Final. A última “epístola”
Meu caro Bispo… já não lerá esta e também já não escreverei mais. Dos “monólogos” com D. António Marcelino às “Epístolas” que trocámos, a vida (ou o fim da mesma) colocou um definitivo ponto final.
Em função das circunstâncias, das realidades e dos contextos, uma década pode parecer muito tempo, uma eternidade ou tempo nenhum. Particularmente, os últimos onze anos foram marcados por encontros e desencontros que, nas mais distintas realidades e nos mais diversos contextos, a vida foi pautando a seu bel-prazer. Neste espaço temporal, Aveiro assistiu à transferência de “testemunho episcopal” do D. António Marcelino para si (2006); enlutámo-nos com o falecimento de D. António Marcelino, responsável pela diocese de Aveiro durante quase 20 anos (2013); volvidos apenas oito anos de episcopado Aveiro perdê-lo a si para a diocese do Porto… e, há dois dias (meros quatro anos volvidos), o céu abatia-se sobre nós com o anúncio do seu falecimento.
A nossa primeira conversa, recordo-a como se fosse hoje, foi transparente e directa por uma questão de respeito, de transparência de posições e de aproximação recíproca. Não foi fácil, durante os primeiros anos da função episcopal em Aveiro ocupar um vazio deixado por D. António Marcelino, nomeadamente enquanto foi Bispo Emérito e enquanto foi vivo, sendo que este “ocupar” não tem, claramente, o significado de “substituir”. No entanto, paulatinamente, fui-me consciencializando que não faz sentido, como lhe disse algumas vezes, a expressão de que “ninguém é insubstituível”. Não é verdade. Há pessoas que marcam as nossas vidas, que são referência, que não são supridas ou revogáveis.
A sua simplicidade, a sua integridade, a disponibilidade para estar presente e ouvir, a sua particular visão da doutrina social da Igreja que tanto nos aproximou, o seu olhar sobre a sociedade e o seu profundo sentido de bondade, a sua concepção de uma Igreja presente e humanizada, a distinta capacidade apostólica e o dignificante sentido pastoral, a sua inquestionável sabedoria e o seu invejável saber (fruto da filosofia, da sociologia que o formaram e da vocação jurídica relegada para segundo plano por força de outro chamamento), foram complementando a aproximação crescente (e rápida) entre si e este crente teimosamente distante e preguiçosamente nada praticamente, quase sempre crítico. Recordo-me do nosso último contacto presencial e da sua sempre pronta e certeira palavra como se fosse hoje: “o Papa Francisco tem mesmo algo de especial porque desde que foi eleito tenho recebido poucas críticas tuas”. Não falta aqui nenhuma vírgula, nem nenhum acento. Foi o princípio de mais alguns minutos de deambulações pela doutrina social da Igreja, pela sociedade, pela política, pela Igreja… e ficou-me o coração cheio.
Coração agora triste, vazio, amargurado. Vai ficar sempre presente a sensação de que faltou o cumprimento, o abraço, aquela palavra, aquela frase, aquela ideia, a crítica e aquele texto. Vai faltar… aliás, já falta. Porque muito ficou por dizer, tanto ficou por ouvir.
Já não escreverei mais ao “meu” Bispo… já não tenho os “meus” bispos. Os “meus” Bispos que mais do que serem de Aveiro, do Porto, de Lisboa, são de uma Igreja à qual vão fazer, já fazem, inquestionável falta e que deixam irremediavelmente muito, mas mesmo muito, mais pobre. Os “meus” dois Bispos a quem a sociedade prestará sempre a devida homenagem e lembrará com saudade uma Fé de incontestável espiritualidade mas de inegável sentido humano.
O ciclo (a)normal da vida encerrou os “Monólogos “ e as “Epístolas”, mas não fechará, como não fechou até então, a permanente saudade, memória e presença, de quem me encheu a vida.
Despeço-me, obrigatoriamente, com um até sempre e com um inesquecível: “In Manus Tuas”. Ponto Final.