Que futuro para a humanidade, (Afeganistão) a 8.450 km
(ilustração de Vasco Gargalo:www.instagram.com/vascogargalo / www.cartoonmovement.com/cartoonist/660, in jornal Público / P3)
O mundo olha para os dois pontos quentes, Ucrânia e Faixa de Gaza, como os principais (quase únicos) centros da geopolítica mediática, esquecendo e ignorando outros flagelos humanitários - e diga-se, tão ou mais gritantes – como o Sudão, mergulhado numa das maiores crises humanitárias (fome, desnutrição e doenças que atingem 3,6 milhões de crianças sudanesas, mortes e mais de 10 milhões de deslocados e refugiados) devido à guerra civil que dura desde o dia 15 de abril de 2023 ou a crise económica e, principalmente, de dignidade humana e atropelo aos direitos fundamentais no Afeganistão Talibã.
Sobre o Afeganistão, importa relembrar que, na sexta-feira, assinalaram-se 3 anos (30 de agosto de 2021) da retirada das forças militares da NATO (Estados Unidos, Reino Unido, França, Canadá, Alemanha, juntando-se, a estas forças, a Austrália) do país, avivando a memória dos dantescos acontecimentos no aeroporto de Cabul.
O absurdo Acordo de Doha, assinado pela Administração Trump, a 29 de fevereiro de 2020, no Catar, não só não assegurou, minimamente, uma consistente transição ou continuidade de poder (precipitada pela estratégia de retirada assinada pela Administração Biden), como apenas se preocupou com a questão do terrorismo, menosprezando todas as questões económicas, sociais e humanitárias que, muitos, adivinhavam poderem emergir face às conquistas das forças talibãs. E, ainda, colapsou totalmente em relação ao pressuposto que sustentou o Acordo que era o isolamento e extinção daa Al-Qaeda. Não só os talibãs não cumpriram, como promoveram a ascensão do grupo terrorista em várias províncias e regiões do Afeganistão.
Se é certo que a retirada das forças estrangeiras do Afeganistão resgatou perto de 120 mil civis, também verdade que deixou muitos milhares à mercê da arbitrariedade extremista e vingativa dos Talibãs, criou mais um Estado-pária no mundo (cerca de uma dezena) mergulhado num subdesenvolvimento elevado e tornando-o o país do mundo mais repressivo dos Direitos Humanos, principalmente em relação às mulheres e crianças femininas, só ultrapassável nos contextos que levam à morte.
Durante 17 anos, entre 2004 e 2021, mesmo com muitas deficiências e um longo caminho a percorrer, o Afeganistão promoveu princípios e regras mais democratas, uma economia sustentada e regulada, e a defesa dos direitos humanos fundamentais e universais, justos e equitativos.
Em cerca de 2 anos, com o mundo a assobiar para o lado, completamente distraído e paralisado com a pandemia, a ascensão dos Talibã trouxe um completo retrocesso nos direitos das mulheres que quase faz parecer o xiismo jafarita do Irão ou o judaísmo ortodoxo israelita um conto de fadas, ou o livro “Identidade e Família” o ‘País das Maravilhas’.
Depois do Ministério dos Assuntos da Mulher ter sido substituído pela polícia moral do Ministério da Promoção da Virtude e da Prevenção do Vício, as mulheres, livres e com direitos consagrados, são agora, por imposição ‘moral’, ‘cultural’, ‘legislativa/normativa’ e por mera anormalidade masculina obrigadas ao uso da burka ou o hijab; limitadas ao ensino primário; proibidas de conduzir; proibidas de exercer qualquer profissão e nos organismos do governo apenas trabalham as que, por função, não são substituídas por homens; não podem viajar sozinhas; não podem praticar desporto ou qualquer atividade artística/cultural; impedidas de exercerem cargos políticos e públicos; e, mais recentemente, proibidas de cantar, falar, sussurrar ou suspirar em público. Resta-lhes, ao menos, o poder respirar. E mesmo isso porque interessa aos homens.
Reduzir a mulher, sem qualquer direito ou dignidade, sem qualquer valor, apenas à única satisfação da vontade masculina e ao seu mero serviço, tal como - e meço bem as palavras – um animal doméstico, não tem qualquer explicação, justificação, argumentação teocrática, científica ou cultural, a não ser a condenável e repulsa por tamanha abjeção dos mais elementares e fundamentais direitos e igualdades.
E mesmo assim, mesmo com o mundo de costas voltadas para o país, ainda há mulheres afegãs que resistem, lutam e desafiam o próprio destino pela sua liberdade e dignidade.
Triste humanidade.
Publicado na edição de hoje do Diário de Aveiro (pág. 8)
(atualização ao texto editado no Diário de Aveiro)
(exemplos) Protesto das mulheres afegãs contra o apartheid de género no Afeganistão.