Querer celebrar a democracia, matando-a
Capitães de Abril, membros do Conselho da Revolução, Grupo dos Nove (Marques Valentim - Atlântico Press/Getty Images, in SIC Notícias - 2023)
Há uma permanente tentativa, há algumas décadas a esta parte, de falsear e reinventar a história e o passado do pós-25 de Abril (e do próprio 25 de Abril), principalmente depois do universo político-partidário ter perdido nomes como Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa, Freitas do Amaral, Adriano Moreira, Mário Soares, Álvaro Cunhal, apesar de ainda podermos partilhar memórias com Vasco Lourenço, Sousa e Castro e Ramalho Eanes, entre outros. Aqueles que, conhecendo e vivendo parte dessa história, por respeito à Revolução de Abril, à democracia e à liberdade, nunca pretenderam valorizar o que se limitou a ser uma natural evolução das consequências da revolução.
Esta deplorável tentativa de revisitação não acontece pela importância histórica ou pelos factos em si mesmos, mais que estudados, comprovados, escritos/divulgados ou partilhados. Mas sim porque, ideologicamente, interessa desvalorizar e esvaziar o 25 de Abril (e o próprio 25 de Novembro) por parte daqueles que, à data, se escondiam em casa, alguns até debaixo da cama, à espera de ver para que lado sopraria o vento e que em nada contribuíram para os acontecimentos. Estes que tanto criticam e acusam o COPCON (curiosamente, promulgado com a assinatura de António Spínola) ou as FP25 de “sangrarem” a Revolução, e que são os mesmos que esquecem propositadamente, para além de descaradamente, o que foi a realidade e a responsabilidade da ELP, do MDLP ou até do Movimento Maria da Fonte, infelizmente tão presentes na atual Assembleia da República, pela mão da extrema-direita ou do “defunto” CDS de Nuno Melo ou Paulo Núncio.
Ao contrário do que pretendem insinuar e “revisitar”, o 25 de Novembro não foi nenhuma contrarrevolução. Foi, antes, devolver à Revolução de Abril a sua génese e os seus princípios. Foi, principalmente, travar, dentro do MFA, os extremismos de tendência de esquerda e de direita, mais do que uma determinação da sociedade, apesar de todo o mérito que PS e Mário Soares tiveram na história e nos acontecimentos. E muito menos foi o simples travar um alegado sonho de sovietização do país, um mito que a alguns partidos importa alimentar porque é a única forma que encontram de ligação (que nem umbilical é) ao processo revolucionário de 74 a 76. Basta lembrar que, após o 25 de Novembro de 75, o PCP não foi, de todo, derrotado, continuando a integrar o Governo (PS + PSD e PCP). Aliás, derrotados foram aqueles que pretendiam ilegalizar o PCP e que hoje se assumem, falsa e erradamente, como herdeiros do 25 de Novembro. Nunca o foram, nem, pela história, o serão algum dia. A propósito Sousa e Castro (Capitão de Abril e de Novembro) lembrava, há dias, as entrevistas dadas por Melo Antunes, Vasco Lourenço e pelo próprio, no dia 26 de novembro (arquivos RTP): “o 25 de Novembro foi, também, uma luta firme em travar o revanchismo da direita extrema. Por isso, é claro o sentido deste revivalismo: dividir de novo a sociedade portuguesa”. Isto, à custa de adulterações da história, conforme nos dá mais jeitinho ideológico ou partidário e de quererem colocar no centro da história heróis de “pés de barro” que não o foram, antes pelo contrário. Se é para evocar o 25 de Novembro, é para celebrar com Vasco Lourenço, Eanes, Sousa e Castro, e lembrar a memória dos restantes membros do Grupo dos Nove, do Conselho da Revolução, e, naturalmente, a de Mário Soares.
Por várias vezes foi equacionada, no Parlamento, a evocação do 25 de novembro, com o apoio, ou, até, com propostas concretas da esquerda (e obstaculização à direita), mas pela história e factos, pela memória do que foi. Não um revisionismo com fundamentos ideológicos, de celebrar o que não foi vivenciado, com o único objetivo de perseguir e destruir o 25 de Abril, paradoxalmente o marco da nossa história que permite, pela democracia e liberdade alcançadas, estes deslumbramentos partidários chauvinistas e ignóbeis que, ignorando a história, querem agora elevar o 25 de Novembro àquilo que ele nunca foi: um processo divisionário, de confrontação cultural e ideológica. Mas antes pacificação, centralidade política, moderação e restituição dos valores de Abril de 74.
A atual direita parlamentar, renegando os seus princípios fundadores e o seu passado histórico-político, apunhalou a democracia e a liberdade que tanto custou a conquistar. Revelou-se no que é e ao que vem.
Publicado na edição de hoje do Diário de Aveiro (pág. 8)