Referendar direitos, liberdades e dignidade humana
Sejamos claros… são vários os estudos e os dados que há muito desfazem o mito populista: não há relação direta entre imigração e violência ou insegurança. É pura mentira e ficção ideológica que os imigrantes “usurpam” serviços de saúde, “roubam” emprego, recursos orçamentais e benefícios sociais sem que contribuam para tal. O Relatório Estatístico Anual de 2023 da Segurança Social demonstrava que as contribuições sociais dos estrangeiros ultrapassaram os 1,8 mil milhões de euros, enquanto a despesa com prestações sociais aos estrangeiros foi inferior a 260 milhões de euros. O que representa um saldo positivo de, em números redondos, 1,6 mil milhões de euros. Sem esquecer o que a imigração representa para o mercado laboral, para a economia e para a demografia.
Mais ainda, tal como a imensa diáspora portuguesa espalhada pelos quatro cantos do mundo, ninguém imigra por gosto: procuram melhores condições de vida, ou porque, infelizmente, tentam sobreviver à fome, à guerra, à perseguição e à morte.
Para qualquer pessoa é uma questão de direitos humanos. Para um cristão (excluindo a hipocrisia beata e bafiosa) é uma questão de respeito pelo próximo. Para os portugueses é elevação da nossa história, identidade e cultura de acolhimento.
Anunciar a proposta de um referendo sobre imigração como moeda de troca para aprovação do Orçamento do Estado é tudo menos responsabilidade política, seriedade, honestidade, democracia e defesa dos direitos e liberdades. Embora, por outro lado, seja o espelho de tudo o que é o radicalismo da extrema-direita, o populismo, a ideologia da superioridade racial e do fascismo-nacionalismo, da xenofobia, do racismo e da total ausência de humanismo.
A proposta é surreal, demagoga e uma verdadeira falácia. Não tem cabimento nem consistência legal ou constitucional (nem tudo pode ser referendado) e apenas pretende recuperar uma agenda ideológica e programática de uma extrema-direita que perdeu força e representatividade nas últimas eleições europeias e começa a perder credibilidade na sociedade, com tanta mentira, irrealismo e embuste. Basta recordar o recente episódio com a estrutura açoriana do Chega que inventou e mentiu sobre uma inexistente invasão de embarcações chinesas ao largo dos Açores, levando mesmo a uma intervenção da Força Aérea e da Marinha, com todos os custos que isso implicou e que os contribuintes vão ser forçados pagar.
Com esta proposta, num total arbítrio abstrato, não só pretendem explorar e agitar sentimentos condenáveis e deploráveis, como querem catapultar um argumento político para não assumirem a responsabilidade de aprovar o Orçamento da AD, da direita, e deixar nas mãos do PS tal responsabilidade final. Se o PS viabilizar, passam a assumir o papel de líderes da oposição. Se o OE2025 chumbar, a (ir)responsabilidade será do Governo. A narrativa está montada: "nós quisemos e tudo fizemos para aprovar. O Governo é que optou por dar a mão ao PS".
É a política pueril, simples, populista e irresponsável... mas também reflete a imagem ideológica e programática de quem a pratica.
Porque se fossem verdadeiramente sérios e éticos na forma como encaram a democracia e a política, tinham proposto um referendo à verdadeira tragédia da violência e do abuso dos direitos humanos, nomeadamente da dignidade das mulheres: a violência doméstica. Das 22 vítimas mortais, em 2023, 17 eram mulheres e 2 meninas, e 73% dos agressores eram homens (média de 50 anos) de nacionalidade portuguesa (91%). Só no primeiro semestre de 2024, a APAV recebeu e acompanhou mais de 10 mil pedidos de ajuda em contexto de violência doméstica, uma realidade que não escolhe qualquer estrato ou condição social.
Só que isso colidiria com os valores retrógrados, bolorentos e ultra-conservadores, tão proclamados no Estado Novo, como é encarada a família, o papel patriarcal na sociedade, o desrespeito pela mulher e pelos seus direitos e liberdades e a desvalorização da sua relevância familiar e social. Significaria desmistificar a hipocrisia criminal da máxima tão “cartilhada”: ‘entre marido e mulher não metas a colher’.
Isto é que deveria ser referendado: a existência de uma ideologia e de um partido que atenta contra a liberdade, a democracia e os mais elementares direitos humanos. A bem de Portugal.
Publicado na edição de hoje do Diário de Aveiro (pág. 8)