Sentimento defraudado
entre confinamentos e desconfinamentos... um enorme risco para que tudo acabe mal.
A frase da "reflexão (desta) semana" recorda Sá Carneiro, no ano de 1978, e termina com a expressão forte: "(...) nós estamos a ver mais uma vez que o Povo Português foi defraudado da sua boa-fé". E fomos...
Havia, apesar de alguns erros, alguma perspectiva de que Portugal sairia por cima no combate e na mitigação da COVID-19. Mas do expectável "milagre português" e de algumas referências como "exemplo internacional", rapidamente se passou a um sentimento de decepção e frustração, motivado pela inesperada anarquia política pós-confinamento, nomeadamente no que respeita às medidas e orientações a aplicar, aos desequilíbrios e às diferenciações criadas perante contextos e realidades similares.
Há, hoje, uma alargada percepção de um tempo perdido e de oportunidades falhadas que permitissem encarar e enfrentar a COVID-19 nos próximos meses, principalmente a seguir ao verão, período que os especialistas indicam como demasiado preocupante.
A agravar toda esta realidade estão as mais recentes declarações do Primeiro-ministro, António Costa. Os portugueses (e o país) esperariam de alguém com responsabilidades governativas, e, no caso, as principais responsabilidades, uma maior clareza, frontalidade e assumpção de compromissos nesta grave crise que atravessamos.
António Costa, ao declarar esta semana que "Não podemos repetir o confinamento. O país não aguenta.", volta a cair numa repetida incoerência política e leva à legitima questão: falhámos no confinamento, falhámos no desconfinamento ou falhámos nos dois?
Uma coisa é certa... a promessa de António Costa de dar o tal "passo atrás" no caso do desconfinamento falhar (ou, nas suas palavras, no caso dos portugueses falharem) foi completamente por água abaixo e enfiada na gaveta. Entre a Saúde Pública (e dos portugueses), que é a génese da actual crise, o Primeiro-ministro (e o Governo, mesmo que com vozes dissonantes) optou claramente pela Economia.
A verdade é que o mês e meio de confinamento (que António Costa quis apagar na última reunião com o Infarmed e que gerou algum mau-estar e levou ao seu cancelamento), com todo o esforço exigido aos cidadãos, aos serviços públicos e à economia (empresas, comércio e serviços), apenas serviu para confirmar a debilidade da capacidade de resposta do Estado Social e das finanças públicas. Percebe-se, com mais clareza, a "fuga" do ex-ministro Mário Centeno (mas isso, apesar de tudo andar ligado, serão contas de outro rosário).
Valeu a pena? Trouxe alguns benefícios e impactos para a educação cívica dos portugueses? Olhando para todo o processo de desconfinamento, valeu a pena os sacrifícios exigidos ao turismo (restauração, hotelarias, etc.), à cultura, à informação, ao comércio tradicional e local, aos serviços públicos e privados, às empresas? O Serviço Nacional de Saúde está mesmo tão estruturado e sólido como querem, ideologicamente, fazer crer? Estaremos, de facto, preparados para enfrentar um período de outono e inverno, do qual não temos qualquer experiência (o surto atingiu o país em plena primavera, após o período tradicional da gripe sazonal)?
Não houve uma estratégia coerente, pensada e projectada no futuro da transição do confinamento para o desconfinamento. Basta olhar para um cristalino exemplo da dissonância que existe no seio do Governo: o Ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, quer o fim dos limites a lotações nos transportes públicos. A Ministra da Saúde, Marta Temido, não vê razão, motivo, ou qualquer alteração da realidade que leva à alteração das regras que exigem a redução da referida lotação.
A fragilidade do Estado Social, muito por culpa das Reformas que tardam em aparecer, vai colocar o país num patamar complexo e difícil, muito para lá do que foi vivido após 2011.
A queda do PIB português era estimada, em abril, entre os 3,8% e os 5,8%. Em junho, o Banco de Portugal previa uma redução na ordem dos 9,5%.
Cerca de 3,9 milhões de consultas, 93 mil cirurgias canceladas, uma redução de 44% no acesso às urgências e milhares de exames de diagnóstico que ficaram por realizar provocam uma enorme pressão no SNS e espelham a fragilidade da sua estruturação. Mais ainda... esta preocupante realidade irá cair, directamente, sobre os profissionais de saúde, manifestamente esgotados com este período de combate ao vírus.
A taxa de desemprego, segundo o INE, no primeiro trimestre situou-se nos 6,9% e o Conselho de Finanças Públicas aponta um aumento da taxa de desempregados perto dos 13%, em 2020.
Segundo o Gabinete de Estratégia e Planeamento (GEP) do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, entre março e junho, 113.500 empresas pediram acesso ao regime de ‘lay-off’, para redução do tempo de trabalho e dos salários de 1.351.414 trabalhadores. Em julho, 46.000 empresas pediram a prorrogação do ‘lay-off’, correspondendo a cerca de 880.000 trabalhadores.
Além disso, numa outra perspectiva, não menos relevante, importa dar nota dos impactos que o vírus pode trazer, no futuro, à saúde daqueles que foram infectados. Os especialistas do Centro Hospitalar Universitário S. João, no Porto, detectaram "danos colaterais" graves, provocados pela COVID-19, ao nível pulmonar (fibrose), cérebro, vasos sanguíneos, pele, rins, baço, diabetes ou coração (enfartes, arritmias, por exemplo). Estes contextos têm, por outro lado, impactos significativos (para além da saúde individual... o mais importante) no SNS, nas prestações sociais, na economia (absentismo laboral) com claros choques nas contas públicas e nas despesas individuais.
A questão é, apesar do seu contrário, simples: confinámos justificadamente e para quê? desconfinámos cedo e descontroladamente? estamos preparados para enfrentar o outono e o inverno de forma consistente e planeada? Pela amostra, há mais dúvidas que certezas... pela dissonância interna no Governo e pelos zig-zagues constantes nas abordagens, mais reactivas que pró-activas, ainda são maiores as incertezas.
E preocupamo-nos a olhar mais para fora do que para nós mesmos.