Statues Matter... ou como "A História Nunca pode ser Travada".
Vemos, Ouvimos e Lemos... não podemos ignorar.
(créditos da foto: Nuno Fox, Expresso)
Se há momentos em que Sophia de Mello Breyner Andresen ganha um dimensão ainda maior do que a (merecidamente) tem, esses momentos são os de agora, os dos últimos acontecimentos e dias.
Ressoam na memória partes do poema "Vemos, Ouvimos e Lemos" (penso que de janeiro de 1969), bem como uma "velha frase batida", com pelo menos 36 anos: «a história nunca pode ser travada" (MCE - Movimento Católico de Estudantes).
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar. (...)
Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror. (...)
Vem tudo isto a propósito dos últimos desenvolvimentos nas manifestações e posições anti-racismo que culminaram com vandalizações de estátuas (e a respectiva contra-resposta racista) e a negação de uma realidade que existe, infelizmente pela voz de quem menos esperava (Rui Rio).
Qualquer forma de discriminação, exclusão, perseguição, intimidação e exploração que atentem contra a dignidade da pessoa e do inquestionável valor da vida têm, na sua génese, os deploráveis princípios do racismo e da xenofobia. Seja de que forma for, meios ou justificações, nada justifica a incapacidade (ou a opção e convicção próprias) de aceitar a diferença do outro na igualdade da condição humana. E TODOS merecemos e temos direito a "RESPIRAR". Daí que toda e qualquer manifestação que promova e defenda a igualdade (toda a igualdade independentemente da raça, cor, credo, nacionalidade ou etnia) tem toda a legitimidade e aceitação.
Querer subverter estes sublimes princípios e valores com pormenores, "danos colaterais" ou abomináveis atropelos e aproveitamentos extremistas (de um lado ao outro dos extremos) significa deitar tudo a perder, esquecer o essencial, deixar que a realidade se afunde ou continue na mesma até ao próximo "i can´t breathe".
Infelizmente, é por demais recorrente e usual a infiltração e o aproveitamento de manifestações e movimentos de cidadania por parte de radicais, extremistas e fundamentalistas que, sustentados num perigoso e condenável anarquismo, subvertem os princípios, valores e objectivos das legítimas acções.
A lista seria interminável mas relembremos, apenas como exemplos mais recentes, as "infiltrações" nas manifestações pró-independência na Catalunha e nas manifestações em França (Mouvement des Gilets Jaunes). No caso das manifestações surgidas nos Estados Unidos e, rapidamente, espalhadas pelos quatro cantos do mundo, a história podia ser diferente... mas não foi. Entre as situações de violência, de pilhagens e confrontos entre posições extremas, surgiram, recentemente, os vandalismos e atentados à História da Humanidade: Cristóvão Colombo (USA), Edward Colston, Winston Churchill e Baden-Powel (Inglaterra, Leopoldo II (Bélgica), a Rainha (inglesa) Victória (Quénia) ou, em Portugal, a estátua de Padre António Vieira. Tanta gente que faltou às aulas de História (já para não pensar nas notas que tiveram).
A falta de senso e estupidez chega ao cúmulo da promoção de uma petição pública para a demolição do Padrão dos Descobrimentos e da Torre de Belém, por se considerarem símbolos alusivos ao racismo colonial.
BASTA! isto apenas serve os defensores do racismo e da xenofobia, os que defendem supremacias raciais. A história, nomeadamente a portuguesa, vai muito para além da escravatura ou do colonialismo do império. Não há nada pior ou mais errado que querer reescrever a história, negar cada momento vivido ao longo de séculos de existência da vida humana e das sociedades, só porque há quem pretenda olhar para a história com os "olhos de hoje". Ou pior, só porque quem não perceba o valor da liberdade e da democracia e queira impôr uma única verdade ou realidade, por convicção. Isso não é possível... isso não é aceitável. A História tem um papel incomensurável na estruturação de cada presente e na preparação do futuro. Negar isso é colocar em causa tudo o que hoje se defende e se deseja.
A HISTÓRIA NUNCA PODE (DEVE) SER TRAVADA!
Por último, não há nada pior para o crescimento de uma realidade que se pretende eliminar e radicar do que o negacionismo, fazer de conta que ela não existe, enterrar a cabeça na areia. Ou ainda, pretender-se justificar uma "não existência" comparando-se contextos e dimensões distintas.
O racismo não tem côr, não tem fronteiras, não tem nacionalidade. Existe enquanto houver alguém que explora, despreza, violenta ou discrimina outro. E essa realidade, ao contrário do que afirma (levianamente) Rui Rio (e infelizmente associando-se ao que de mais abominável há no discurso racista, xenófobo e populista) existe na sociedade portuguesa. Não é aceitável e compreensível que se escondam convicções, acções e pensamentos, realidades do dia a dia, só pela sua dimensão estatística ou pelo volume de acontecimentos. O racismo está mais que camuflado e hipocritamente presente na sociedade portuguesa, Dr. Rui Rio. Negar isso é meio caminho andado para o avolumar da condenável realidade.
É o mesmo que dizermos que a violência doméstica só acontece num ou noutro contexto familiar (e "entre marido e mulher não metas a colher", não é?) apesar dos números de 2019 (Relatório Anual da APAV). É o mesmo que dizermos que não existe pedofilia ou abusos contra crianças. É o mesmo que dizer que não há desigualdades salariais entre mulher e homem no semepnho das mesmas funções ou que as oportunidades laborais são iguais. É o mesmo que dizermos que a mutilação genital feminina só existe na África mais profunda e distante. É o mesmo que dizermos que a Europa das liberdades, garantias e democracia sabe acolher os Refugiados. É o mesmo que dizer que num contexto escolar ou laboral, um preto, cigano, asiático ou islâmico tem as mesmas oportunidades. É o mesmo que dizer que a triste forma como os portugueses continentais receberem os portugueses que retornaram das antigas colónias foram meras "escaramuças insignificantes". É o mesmo que olhar para os comentários, observações, opiniões balizadas (como as deploráveis divagações extremistas e ultra-conservadoras de Helena Matos ou Cristina Miranda, no Blasfémias) e dizermos que são "fofas críticas". Não. Não é o mesmo.
Negar que há racismo, xenofobia, desigualdades sociais e de género é, tão somente, negarmos a nossa realidade e existência enquanto sociedade multifacetada e multicultural.
Infelizmente... há tanta gente que NÃO CONSEGUE RESPIRAR.