Uma Justiça que fere a democracia (quando a devia cuidar)
(fonte da foto: in Caminhos da Memória - 06.abr.2009)
Num Estado de Direito democrático a separação de poderes entre a Justiça e a Política é mais que estruturante, é essencial para o fortalecimento e sobrevivência da democracia.
Quando a Justiça se desvia da sua missão, desvirtua as suas responsabilidades e se auto escusa ao escrutínio, fere a democracia e o Estado de Direito. À Justiça, ou ao sistema judicial, compete julgar contextos ilegais e/ou penais/criminais, não compete, de todo e de modo algum, o julgamento político ou dos políticos. Esse cabe, por direito próprio, aos cidadãos.
Escolhendo, cirurgicamente, tornar público o que devia ser segredo processual, manifestamente de forma “agendada” (quando decorre o processo de escolha do próximo presidente do Conselho Europeu, entre outros exemplos anteriores), o Ministério Público tem, nos últimos anos, prestado um péssimo e deplorável serviço à Justiça, denegrindo ainda mais a sua paupérrima imagem, mas, fundamentalmente, à democracia.
É por demais reconhecido e conhecido o inócuo e vazio processo “Influencer”. Uma mão cheia de nada e outra cheia de coisa nenhuma. O que foi tornado público é o total desmoronar do castelo de cartas das surreais e mitológicas suspeitas no processo de investigação. Discorra-se ainda que, neste âmbito, um parágrafo derrubou um Primeiro-ministro. Perante tudo o que a realidade tem revelado, não há outra forma de o dizer: foi golpe! E não terminou aí.
Durante quatro anos, o Ministério Público palmilhou a privacidade e a intimidade do ex-Ministro João Galamba. Sublinho… durante 4 anos (82 mil comunicações intercetadas). Neste período foram gravadas conversas mais que normais (para não dizer banais) entre um Primeiro-ministro e o Ministro, no âmbito dum normalíssimo ato de gestão governativa do país. Não há uma vírgula, uma palavra, um parágrafo, não há ponta de ilegalidade ou de crime no que foi escutado e extraído das conversas entre ambos. Simplesmente opções políticas (concorde-se ou não) legítimas em qualquer governação, que, ao caso (demissão da ex-CEO da TAP) apenas reforçam a decisão de rescisão unilateral contratual por, na opinião do Governo, quebra de competência para o cargo.
Se isto, por si só, já se afigura como inaceitável, mais preocupados podemos ficar quando tais escutas estão apensas a um processo (Influencer) com o qual as conversas nada têm em comum ou qualquer relação “umbilical”. Mas tal não bastava ao Ministério Público. Como da investigação a António Costa nada surgiu do ponto de vista criminal e judicial, resta ao Ministério Público ferir e abalar o carácter político do ex-Primeiro Ministro, promovendo uma cirúrgica fuga de informação, um rombo premeditado do sigilo judicial dirigido a um específico órgão de comunicação social (TVI/CNN) no dia em que entrava no ar um novo canal de televisão (NOW) que tem a colaboração de António Costa.
Mas podemos ir mais longe… deixemos a perseguição político-partidária (basta comparar, também, com Rui Rio).
Se já restava pouca confiança no sistema judicial, o que agora sobressai é o medo que surge em relação ao Ministério Público. As escutas, enquadradas nos limites que a legislação já determina, são um meio excecional de obtenção de prova. Não são, nem podem ser, uma forma de vigilância, de inquirição permanente, onde tudo e todos, atos políticos e de governação, vida privada e privacidades, são bisbilhotados e escutados sem rigor ou critério. Não para obtenção de prova, mas à “caça arbitrária” de um eventual crime ou ao voyeurismo judiciário assente numa ideologia corporativa cega e surda que teima em não querer distinguir o judicialismo político do que é crime. E, desta forma, embrulhando (pela universalidade das comunicações) tudo e todos, mesmo os mais inocentes e simples cidadãos, lembrando tempos perigosos pré 25 de Abril e alimentado os defetíveis atuais populismos.
Tudo isto, quando a Justiça deveria ser o pilar da defesa da democracia, dos cidadãos e dos seus direitos, liberdades e garantias.
Recuamos, com preocupação, aos primeiros séculos e aos tempos romanos: “quem nos guarda dos guardas?”.
Publicado na edição de hoje do Diário de Aveiro (pág. 9 )