Umas eleições à escala mundial (muito mais do que locais)
(crédito da foto: Evan Vucci/AP, in Euronews)
Mais do que centrar o focus em Kamala Harris, o Partido Democrata deve olhar, primeiro, para si mesmo e se tudo foi feito para que o resultado eleitoral tivesse sido outro. Sou dos que subscrevem que Kamala foi a melhor escolha, a melhor candidata, realizou um enorme e excelente trabalho face ao tempo, às circunstâncias políticas e aos desafios. Agora, conhecido o desfecho é fácil julgar, mas muitos dos que soltam críticas, são os que, aquando da escolha, soltaram vivas. Este cenário pós-eleições é secundário, interno e reparável num futuro próximo (se houver tempo).
Importa trazer à reflexão outro contexto, infelizmente, bem mais preocupante: Donald Trump.
E porque é que umas eleições num país distante, a cerca de 9 horas e 5.750 km, extravasam as suas fronteiras e o seu espaço territorial?
O que é surpreendente mais na interrogação é o distanciamento ingénuo, assumido e consciente, em relação às eleições, a estas concretamente, nos Estados Unidos. A maioria dos portugueses acha que é assunto que só a eles diz respeito porque as eleições norte-americanas não vão trazer mais emprego, melhores salários, mais habitação, mais médicos, mais professores, melhor justiça.
É pesaroso ver que, em pleno século XXI, há quem ache que o mundo se circunscreve à sua região e às fronteiras nacionais (que já nem fisicamente existem) e que há milhas e milhas atlânticas que nos separam da América. É doloroso ver que há quem limite a globalização à questão meramente económica, sem ter a consciência dos impactos que determinadas dinâmicas geoestratégicas, políticas, sociais e ideológica (democráticas ou não) têm nas nossas vidas e no nosso dia-a-dia.
Desenganem-se. As eleições norte-americanas são quase tão importantes como as nossas eleições. Já não vivemos confinados ao nosso quintal ou à nossa “aldeia”, imunes ao exterior. Já não estamos, nem conseguiremos estar (felizmente) “orgulhosamente sós”. Depois desta última terça-feira, corremos sérios e pressentíveis riscos de ficarmos bem pior.
O risco para a democracia na alavancagem de princípios que têm abanado os seus valores, com o crescimento da ideologia extremista, nacionalista e radical da direita, com consequências graves na coesão e na sobrevivência da União Europeia.
A posição em relação à Ucrânia é outro motivo de preocupação, principalmente pela sua proximidade com Putin e as críticas feitas ao apoio militar e financeiro dos Estados Unidos a Kiev. Um retrocesso no processo e na pressão para o fim da guerra beneficiando o invasor, daria à Federação Russa uma confiança política para novas interferências internas noutros países do leste europeu. Ainda no campo da conflitualidade internacional, o reforço do apoio a Israel e a legitimação dos seus mais recentes atos dará origem, no Médio Oriente, ao crescimento de um maior sentimento de ódio e revolta, com o Irão à “cabeça”. Assim como a relação com a NATO. Desde as ameaças à retirada americana do Tratado, até à afirmação de “que não protegeria um país que não pagasse os 2% do PIB” ou como encorajou Moscovo a fazer o que quisesse. A tão frágil paz no mundo ficará mais comprometida.
Do ponto de vista social, as posições, que se esperam repetíveis, em relação à migração e ao ambiente, deixarão marcas internacionalmente.
Por fim, é conhecida a obsessão de Trump com a China. Pressioná-la e confrontá-la indistintamente, trará uma instabilidade económica internacional, a polarização do xadrez mundial, um fosso maior entre ricos e pobres, entre explorados e exploradores.
Não vinga o acenar da bandeira demagógica do “é a democracia, estúpido!”. Sendo o menos mau de todos os sistemas, as suas fragilidades transportam o risco da democracia ser, em si mesma, a sua antítese e o seu extermínio.