Vale a pena pensar nisto #06
Sobre a criança Valentina... e outras "Valentinas"
O relatório da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) dava conta que, em 2019, 1.467 crianças foram vítimas de crime (mais 532 do que em 2018, numa média de 4 por dia ou 28 por semana) sendo que em 27,3% dos casos a autoria do crime foi atribuída ao pai ou à mãe.
Se um crime, agravado pela existência de vítima mortal, é, por si só, uma realidade condenável, este acto toma contornos abomináveis quando está em causa uma criança, dada a sua fragilidade, incapacidade de autodefesa e a perspectiva futura e longínqua de vida.
Não querendo particularizar a mais recente hedionda morte da criança de 9 anos - Valentina - em Atouguia da Baleia, na zona de Peniche, especialistas e associações de defesa da criança perspectivavam, desde o início de março e do despontar da pandemia COVID-19 em Portugal, que o isolamento social e o processo de confinamento poderia despoletar o agravamento de situações de violência doméstica, independentemente do seu desfecho, sendo as crianças um evidente e óbvio grupo de risco, se não o mais problemático.
Tal como em outros contextos, este período pandémico tem revelado um conjunto de realidades e profissões que, de repente, assumem um papel preponderante no funcionamento da sociedade em tempos de crise: os profissionais de saúde, as forças de segurança, os profissionais da distribuição, da alimentação, etc. Pessoas e áreas de acção que, em situação dita "normal" passariam despercebidas e diluídas nas rotinas diárias.
No caso da Valentina, há duas notas que merecem reflexão, mesmo que indirectamente relacionadas com o contexto de violência e morte.
Apesar de eventuais aspectos menos positivos, importa realçar a falta que a vertente socializante da Escola se faz sentir neste tempo.
Ou, por outro lado, a falta que o papel dos Avós se faz sentir, ainda mais, no equilíbrio emotivo das crianças em contexto familiar, resultado do recolhimento domiciliário e do afastamento e isolamento social.
Infelizmente, o impacto colateral da pandemia não é, embora mais mediatizado, de todo económico ou financeiro... ele é, pelo menos no mesmo patamar, social (desemprego, pobreza, exclusão, intolerância, falta de liberdade) e familiar (violência doméstica, separação, conflitualidade individual).
(*) imagem adaptada da campanha da APAV: consignação do IRS - "Recomeçar do zero, 0,5% de cada vez"